quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Lendas de Manguezal - Parte III - As Cinco

Manguezal é uma dessas cidades costeiras muito pequenas do interior do nordeste, coberta de mata e com um mangue que faz a economia girar, com poucos habitantes e famílias que têm muitos filhos. Como muitas cidades do interior, temos histórias e lendas que assombram os mais céticos. Uma delas é sobre as cinco bruxas. Ainda no século 17, no antigo convento da companhia de Jesus que hoje está abandonado, houve uma rebelião das freiras que causou a expulsão de cinco delas para as matas. As mulheres que estavam no convento eram índias que moravam na região, assim como mulheres que foram condenadas em Portugal por prostituição, bruxaria e até meninas que foram abusadas ou abandonadas pelos familiares por algum motivo nefasto e tiveram que pagar penitência no local. O convento era um lugar de sofrimento para elas, uma prisão que tinha uma rotina rígida e que as faziam pagar duramente pelos crimes por quais foram condenadas. Mas havia também uma grande troca de conhecimento e união entre as mulheres, o que as fizeram planejar várias rebeliões, sendo a mais famosa uma tentativa de fuga, matando o padre responsável. Foram rapidamente capturadas e julgadas. Cinco delas foram expulsas do local, como bodes expiatórios. Elas tiveram as mão e pernas amarradas, os olhos vendados e foram largadas no meio da mata, sem terem como se proteger dos perigos do lugar. Segundo os relatos, o padre que cuidava do convento na época se chamava Francisco Gonçalves e ele se certificava que as freiras fossem humilhadas e torturadas, tentando fazê-las se purificarem pelos pecados cometidos. Muitas delas tiveram as línguas cortadas, os olhos arrancados e dizem que as mais ariscas chegavam a ter as entranhas retiradas e deixadas para morrer agonizando. Diziam que as freiras sofriam também todos os tipos de abuso sexual, engravidando e tendo os filhos jogados ao mar. Segundo as lendas, os corpos dos bebês foram se acumulando no fundo do oceano, virando uma criatura marítima que um dia irá se levantar e inundará a cidade com uma enorme onda.

Não se sabe do paradeiro das cinco freiras expulsas, mas acredita-se que elas construíram um chalé no meio da mata e segundo as lendas, fizeram um pacto com a divindade Conorihi, idolatrada pelos nativos que ali moravam antes da invasão portuguesa. No pacto elas pediram vida eterna e vingança. Para isso, elas foram inseminadas e tiveram cada uma um filho do que muitos consideram ser demônios trazidos ao mundo como castigo pelo sofrimento do povo que ali morava e das mulheres que viviam no convento. Uma das crias se tornou a doença do mangue que se alimenta de seres vivos de uma forma cruel e repugnante. Uma das filhas passou a vigiar a cachoeira que fica em um rio no meio da mata chamado Pupti, que desagua no mar de Manguezal. Atrás da cachoeira fica uma gruta onde os nativos acreditavam viver Conorihi e que se estende pelo subsolo de toda a cidade, mas nunca foi totalmente explorada. Um dos seus filhos virou um monstro que faz com que os sétimos filhos dacidade se transformem em uma mutação animalesca e selvagem entrehomem e onça.  Há também a filha do mar, um peixe de cauda longa que se transforma em uma linda mulher e seduz os pescadores que conseguem pesca-la, levando-os a um destino cruel. Acredita-se que quem conseguir leva-la para a terra terá abundância por toda a sua vida e por toda a vida dos seus descendentes. Por fim, há também o filho das matas, um conjunto de árvores que se alimentam dos andarilhos perdidos e dos animais que por ali vivem. Quem se perde nas matas e não for absorvido pelas árvores, irão se deparar com uma visão que o perseguirão pelo resto vida. O filho das matas está sempre vigiando e dizem que as suas raízes se espalham por toda a floresta amazônica e além. Ele tudo sabe, ele tudo vê.

O padre Eduardo Álvaro, que assumiu o convento após a rebelião, construiu um altar embaixo de uma grande pedra, hoje localizada na beira da estrada há uns 10 quilômetros da cidade. Antigamente, estátuas das cinco mulheres ficavam expostas no altar para que os seus rostos nunca fossem esquecidos, e acima das imagens eram pendurados vários triângulos feitos de gravetos da floresta, símbolo de Conorihi, e várias cruzes que permanecem no local. Hoje em dia as estátuas se encontram no museu do farol, junto com os relatos sobre quem era cada uma delas. Há sempre velas acesas no local do altar. Todos os dias alguém tem de ascender as velas, pois acredita-se que elas impedem que as cinco bruxas invadam a cidade e matem todos os moradores, pois eles também participaram do exilo. Algumas pessoas dizem ter avistado as cinco bruxas vagando pela cidade na noite de ano novo antes de eles caírem em um sono profundo, e que elas são as responsáveis por isso, soprando na brisa um sonífero potente.

O altar assombra os caminhoneiros que por ali passam. Alguns deles dizem ver uma mulher vestida de branco, com o cabelo ruivo e longo, vagando próximo ao local, grávida e prestes a dar a luz, pedindo socorro aos motoristas. Aqueles que deram carona a ela relatam que após alguns minutos a mulher some da cabine sem deixar traços.

Poucas pessoas conseguiram avistar o chalé construído pelas mulheres. Para vê-lo, você teria de ouvir o chamado delas. O chamado das cinco é muito famoso na cidade e só atinge os homens, que sentem pavor dessa história. Acontece a cada 11 anos em alguma noite de outono. Caso o chamado seja ouvido, a pessoa terá de ir até elas, senão uma maldição se cairá sobre a sua família. As plantações murcharão, a pesca apodrecerá, os familiares morrerão um por um de cólera, mas quem ouviu o chamado, continuará vivo e sozinho em uma sobrevida de fome, miséria e exílio, sabendo que quem se aproximar estará fadado ao mesmo destino da sua família. Então, a única forma de se livrar da maldição é ir até esse chalé ao encontro das bruxas. Quem já foi, diz que fizeram parte de um ritual em que elas os fazem entrar em transe, são desnudados e elas o fazem beber sangue em um cálice feito de madeira da mata de coloração vermelho-sangue, e então o homem é coberto por uma seiva malcheirosa verde-amarronzada que lembra o cheiro de petrificação e os paralisas, mas fazendo-os sentir tudo mais intensamente e se conectarem a êxtase das mulheres e sentir a natureza maliciosa das árvores que o cercam. Em seguida as mulheres o estimulam e misturam o sêmen do homem com o sangue no cálice e bebem. Elas passam a dançar ao redor dos homens, cortando-lhes superficialmente a pele com um punhal e deixando o sangue encharcar o chão, eles então veem uma menina que aparenta ter entre 11 e 12 anos, que está coberta com a mesma seiva e que tem as pernas manchadas de sangue. Elas a deitam em um altar e uma das mulheres se deita em cima dela, absorvendo-a em seu ventre, que se abre, para receber a criança. O homem então vê a bruxa que absorveu a criança rejuvenescer. Assim que o ritual acaba elas pegam um galho de uma árvore e colocam fogo, queimando a cocha do homem. Após a noite na mata o homem é largado no meio da estrada, nu. Em sua coxa esquerda aparecerá a queimadura de um triângulo, que demorará de curar. Quem tem essa marca, diz que ela sempre volta a doer como se tivesse sendo queimado novamente toda vez que ele passa perto do altar na estrada. Após esse encontro com as cinco bruxas, nunca mais eles acham o chalé novamente. Mas eles relatam que sentem um mal estar vindo das matas e preferem evitar o local. Dá para perceber o medo no rosto deles.

Hoje há apenas uma pessoa que diz ter vivido essa experiência. Ele relata ter ouvido o chamado vindo da mata e um cheiro horrível no ar. O chamado ficava mais alto com o passar das horas. Chegava a ser enlouquecedor, segundo ele, pois era seguido de uma música horripilante, com tambores e flautas desconexas e um canto assombroso. Ele sabia que tudo que deveria fazer era seguir o som e no caminho pôde ver triângulos pendurados nas árvores. Ele relatou ainda ter visto algumas árvores com imagens que pareciam rostos o encarando, de pessoas e de animais, e que os troncos pareciam se mexer. Ele podia jurar que algumas daquelas árvores tinham vida e emitiam um som murmurante de choro. Apesar de assustado, ele sabia que se não achasse o chalé, os seus pais, os seus filhos e a sua mulher iriam morrer e ele teria de conviver com a solidão, a miséria e o exilo até o fim da sua vida. E ele diz não se arrepender da sua escolha.

Um dos seus filhos esteve comigo na noite de ano novo em que passamos no convento, após completarmos 11 anos. O garoto está em estado catatônico, mas o homem diz que as vezes sonha com o menino – hoje já com 21 anos - naquela fatídica noite de ano novo, vendo uma mulher com longos cabelos grisalhos e uma camisola branca encarando-o no convento. A mulher tinha olhos brancos e a boca escancarada, tentando gritar, mas sem emitir um só som. Ele vê em seus sonhos a mulher levando uma garota para um lugar no chão e então sumindo. Em seguida o garoto é cercado pelas cinco bruxas, que parecem o reconhecer. No sonho elas sequestram uma outra garota e somem na mata, mas não sem antes falarem com o garoto que conheciam o seu pai e que uma parte dele vaga pelas matas como um animal faminto, provavelmente se referindo ao seu sétimo filho. Em seguida elas dizem algumas palavras desconhecidas e sopram um pó no rosto da criança que não consegue mais se mexer, presa em seu próprio corpo.

Dizem que todas as noites de ano novo, ao menos duas crianças somem. Uma vai para o farol e a outra para a mata. E que por isso a brisa vinda do mar as vezes parece soar como o choro sofrido de crianças. Dizem que as crianças que são levadas pela freira pelo túnel secreto que leva ao farol são jogadas da janela mais alta que ali se encontra, pois ela se tornou a guardiã do monstro marinho que a população crê morar no mar de Manguezal. Acredita-se que as crianças sejam um sacrifício a essa criatura marítima, para que ela nunca se levante. Muitos acham que a mulher sacrifica as crianças pois o seu bebê também foi jogado ao mar se metamorfoseando com o que já havia ali, um ser amorfo e gigante feito dos bebês do convento que foram jogados ao mar e tornaram-se algo sedento por vingança. Essa é uma versão sobre o que acontece com as crianças, pois também se acredita que elas estão presas nesse túnel que conecta o convento abandonado ao farol e que a mulher as matam e em seguida toma conta das almas delas, como se fossem o filho perdido.

Quanto a segunda criança que some, sempre uma menina, há algumas versões sobre o que acontece com ela. Há quem diga que ela é oferecida em sacrifício ao demônio Conorihi e que são servidas em um banquete entre as cinco bruxas após estas se banharem em seus sangues, como uma forma de se manterem imortais. Alguns relatam que elas são servidas como alimento para o filho das matas, que as absorvem através dos caules das árvores, tornando-se mais forte e com raízes mais longas. Os seus rostos ficam cravados nos caules dessas árvores em eterno lamento. Alguns acreditam que as bruxas precisam dos corpos das meninas porque transferem a essência delas para o corpo juvenil para se manterem sempre vivas. Ninguém sabe se isso é verdade, porque ninguém nunca viu o que acontece com as crianças desaparecidas do convento. Mas é essa a história que passamos de geração para geração. E é só uma questão de tempo para que um de nós ouça o chamado das cinco bruxas, pois 11 anos já se passaram.

Sobre as cinco freiras que foram expulsas do convento e são chamadas de bruxas, há registros sobre elas no farol de Manguezal. A história da condenação é famosa e está documentada. A primeira era uma índia nativa da região, uma anciã curandeira que conhecia todo o local, suas matas, as plantas e as ervas, e usava o seu conhecimento para cuidar da aldeia. Era também uma parteira e os nativos acreditavam que os bebês que ela ajudava a trazer ao mundo eram abençoados diretamente por Conorihi e seriam grandes guerreiros caçadores da onça-pintada. Era muito respeitada entre os seus e soube usar o seu conhecimento para envenenar alguns dos portugueses que primeiro chegaram na terra e tentaram subjugar e escravizar o seu povo. Ela foi batizada de Ofélia Barbosa, mas o seu nome real era Mayara. Antes de ser levada ao convento, passou alguns dias entre os portugueses sendo espancada, o que causou grande revolta na aldeia, fazendo que o seu povo se revoltasse e tentasse salvá-la, sendo massacrados no processo.

A segunda freira era também uma mulher nativa, considerada uma grande guerreira que sabia imitar os sons da floresta e tinha uma voz doce como a de um uirapuru, porém movia-se silenciosamente. Foi Mayara que a trouxera ao mundo. A índia foi capturada ao tentar resgatar a curandeira. Conseguiu matar 11 portugueses sozinha. Ela arrancava a língua dos seus detratores, as exibindo em um colar como símbolo da sua bravura. Assim que capturada, teve a língua cortada e foi aprisionada no convento. Foi batizada de Genilda Barbosa e era chamada entre as freiras de mudinha, como uma forma de tentar humilha-la. Mas o seu nome real era Anaí.

A terceira era uma mulher portuguesa condenada por bruxaria. Era na verdade uma mulher que tinha conhecimento de medicina e a sua especialidade era abortar crianças indesejadas. Como tinha cabelos ruivos e pintas pelo corpo, a sua associação à bruxaria aconteceu durante toda a sua vida e por isso era muito perseguida e indesejada. Foi presa por ter não ter conseguido salvar uma jovem nobre durante o processo de aborto. Foi condenada a ir para o mundo novo e a viver no convento por toda a sua vida. Era alvo particular do padre, com quem teve vários filhos e sempre a fazia assisti-la jogar os bebês pela janela logo após ela dar a luz, como penitência pelos bebês que ela abortou.

A quarta era filha bastarda de um nobre português, que dizem ter tido a menina com a filha mais velha. Como ela era supostamente fruto de um incesto, ainda criança foi entregue para um convento onde viveu boa parte da sua juventude. Após a morte do pai, ela foi levada para o novo mundo e escondida no convento como um segredo sujo. Era muito católica e devota e mesmo assim não se livrou das crueldades do padre Francisco Gonçalves, que arrancou os seus olhos. O seu nome era Conceição, o seu sobrenome era desconhecido.

A quinta era uma prostituta que foi condenada por seguir a religião judaica e diziam ser grande conhecedora da cabala. Era de uma beleza estonteante e tinha longos cabelos negros. Teve os seus cabelos raspados antes de ser enviada para o novo mundo. Foi abusada inúmeras vezes na caravela em que estava e chegou com sífilis avançada, com o corpo todo tomado por manchas. Também teve o seu rosto desfigurado por causa das surras que recebeu na viagem. Estava muito debilitada quando foi exilada para as matas. O seu nome era Jéssica Bacelar.

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