quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Da minha janela

Da minha janela vejo um mundo que desprezo,

Que diz que me pertence

E cultua o Deus dinheiro.

Vejo a todos e os vejo mortos

Caminhando para lugar nenhum,

Chamando de destino

O que eu chamo de fim.

Daqui vejo faces de solidão

Que os tornam independentes.

Adormecidos,

Vivem sonhos vazios

Consumindo-os enquanto os tornam pó,

E morrem em overdoses de narciso.

Eu observo as mães alimentando os seus filhos

Com filosofias vãs de morais falidas,

Os pais ignorando as horas

Em frustrações que chamam maturidade,

E os filhos isolados em seus quartos

Digitando mil palavras sem sentido.

Eu me vejo e ignoro

Que colidi com o concreto,

Buscando sentidos que me completam

Perdidos em lugar comum.

Priscila de Athaides – 27/08/2009

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Viagem noturna ou O primeiro cinema


O homem deitou-se em sua cama e leu o céu de mil pretéritos. As estrelas lhe contavam histórias de futuros ainda distantes que se deslocavam pela história. E lá, acima de tudo, a lua repleta de fases acompanhava-o em seus pensamentos noturnos. O homem fechou os olhos e flutuou até o satélite prateado, alcançando o sorriso minguante de Selene, aquela que acendia as estrelas com a sua carruagem, buscando no rosto do viajante a face do amante terrestre. Aprisionou-o então às suas crateras, apontando para o azul redondo que marcava o universo negro. Sua terra, seu lar, seu mundo longe das suas mãos pequenas em face ao mundo da deusa.

Hélios, acompanhando o adeus da sua irmã, carregou o viajante de volta a sua cama e adentrou sua janela. Seus raios avisavam que o dia já invadira as portas das fábricas que transformavam o azul celeste em cinza concreto. O homem vestiu o seu terno, calçou os seus sapatos, ajeitou os poucos cabelos que ainda restavam e seguiu os proletários que tentavam alcançar as próprias sombras marcadas no passeio como ponteiros de passos atrasados.

Desviou-se para a casa dos risos, e no palco dos loucos reconheceu seus sonhos. Dançavam mulheres como mariposas, crianças faziam performances que lembrava-o da infância, homens de cara pálida fazia-o rir de suas tragédias, mágicos enganava-o com truques de luz e mágica, os poetas declamavam seus amores perdidos e o homem sonhava com seus sonhos encenados, guardados na história, com o seu nome transpassando os tempos e marcado na história.

Quis então entregar os seus sonhos ao espetáculo vaudeville. Criou a caixa dos sonhos e captou imagens eternizando-as. Projetou nas paredes o seu mundo burlesco. Apresentou ao mundo o trem chegando à estação, criou demônios que dançavam enquanto lançavam fogos de suas mãos, cartazes criavam vidas, cabeças eram desconectadas dos corpos e ainda assim sorriam, mulheres deixavam os seus corpos nús a mostra, crianças faziam travessuras, o tempo congelava. E eis que o homem levou o mundo à lua, transformando a realidade em algo além do alcance das mãos. É o homem desperto vivendo o seu mais antigo sonho de alcançar os céus e transformar-se em estrelas. O homem entregou o seu corpo ao cinematógrafo e transcendeu a própria morte.

Priscila de Athaides – 21/08/2009

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Pesados


Certa vez me falaram que o meu problema é sempre tentar me apoiar no outro. Me apóio no outro porque sou metade. O outro é sempre a busca de mim, o outro é a tentativa de  alcançar a extensão do eu. Eu busco um complemento e me respondem solidão.

Platão costumava dizer que as nossas almas foram partidas ao meio e que nossa metade está perdida no outro, até nos encontrarmos. Mas Platão dizia que nossas almas pesaram, elas caíram na terra porque estamos impuros. Nosso mundo é imitação, igual ao de cima, igual ao de baixo. O outro se torna pesado, recai sobre nós e nos suporta, mas não nos entendemos. É a exata metade do nosso mundo, e não aceitamos que aquilo pertença a nós. O outro não existe porque somos um. É o outro lado da mesma moeda. O outro nos enche de seu próprio ego, entregamos o nosso próprio ego afim de que se encarem e se reconheçam. O ego entende apenas a sua língua. É um cego composto de sete bocas, todas falam mil línguas que nos tonteiam.

Respiramos para alimentar o corpo de oxigênio, expulsamos as nossas impurezas, assopramo-las pro mundo. Estamos enraizados, extraímos o máximo do mundo, queremos sugar o universo para nossas barrigas, explodimos e não percebemos que explodimos sozinhos, porque estamos unidos, partes de uma única célula, somos um só e nós não conseguimos enxergar o todo. Estamos preocupados com nossas próprias células cancerígenas, enxergamos tudo por pequenas partes. Aprendemos tudo por compartimentos.

E ousamos apontar pro outro e nos julgar melhores, nos sentimos mais puros. Queremos nos projetar, o outro não é o que somos, é a outra parte de nós. Todos caminham no mesmo mundo, nessa dimensão, e todos vivem suas próprias histórias, suas próprias dimensões. Apontamos para o outro apontando pro espelhos, e não nos vemos por inteiro, nossas costas são o ponto cego. O que vemos de frente é um pequeno pedaço do todo.

Somos ignorantes da nossa própria existência e o crescimento nos corrompe enquanto nos completa. A sabedoria é a sujeira da alma. A ignorância a sujeira da mente. Precisamos nos sujar pra pesarmos nossos pecados na morte, e então procurar não mais pesar nossos corpos nesse mundo e retornar para o que está perdido em nós. Para nós mesmos. E então precisamos do outro, porque a nossa alma está dividida e existe parte de nós perdida no mundo, aguardando que um dia retornemos as origens para conseguirmos  partir além. Aqui é só um fragmento de nós. Não entendemos o tempo, não entendemos o espaço, vemos tudo como o agora. E o tempo nos mata enquanto respiramos.

Priscila de Athaides 12/08/2009

terça-feira, 11 de agosto de 2009

A queda





Aproximei-me do precipício e me joguei. Aproximei-me e mergulhei como se houvesse água para amortecer a queda. Creio que retornar ao topo é árduo, mas retornar é sempre necessário. Crê-se que se jogar em busca de água e colidir com as pedras é uma morte certa. Parte de si morre, parte de si fica. O que realmente nos destrói é encarar o estrago de frente, o que fica depois da queda, esperar que o tempo cure as feridas. Porém o corpo se deforma, as cicatrizes às vezes se abrem, elas sempre ficam, olhamos e elas estão sempre lá, nos encarando, nos deformando. Passamos por plásticas, tomamos remédios, maquiamos, e lá está, nos encarando de volta.

Aproximei-me do precipício e me joguei. Esperei poder voar, talvez. A minha alma ficou presa ao meu corpo, é pequena demais pra buscar outros mundos. O que foi embora é racionalidade. Me joguei, subi a montanha e me joguei novamente. Procurei encontrar espaços em minha mente pra entender a queda. Me perdi na busca. Fragmentei-me. Procuro então me envenenar com lembranças, criar novas histórias, procuro enfeitar a face do passado. Não me trazem respostas, não me trazem dor, não me trazem esperança, não trazem nada. Anestesiei-me com a queda. Não tenho o órgão pulsante. Não tenho ar pra me fazer soluçar. Não tenho sangue pra me fazer ferver. Não tenho. Tenho apenas perguntas. Tenho a espera do amanhã, mas ele me trai, ele me arranca o sentimento de perigo, ele me atrai novamente para a beira do abismo. Eu procuro cair de novo, procuro a água para mergulhar o meu corpo, o céu para flutuar a minha alma como Ismália, inalcançando o mundo.

Aproximei-me do precipício e me joguei. Não haviam mãos para me carregar quando cheguei ao chão. Estavam ocupadas demais com as suas próprias quedas, correram para os seus lares e me traíram as promessas. E enquanto eu acreditava valer a pena cair de novo, as mãos me avisaram que não valia a pena esperar eu alcançar o chão. Já estava danificada. Já conhecia o caminho de volta. Esqueceram-se que chegar ao topo novamente é árduo e me deixaram cair, me observando de longe, para não terem as suas mãos sujas de sangue. Eu que me joguei, as mãos estão limpas. Me fizeram crer que eu não estava sozinha. Sozinha estou. Essa foi a minha queda, de mais ninguém. É mais fácil fechar os olhos e dormir quando as mãos estão limpas. Por isso jogaram fora, desapareceram. Eu lidarei com a desfiguração. Eu lidarei com as distorções. Eu lidarei com a loucura. Não há sangue em outras mãos além das minhas. Assim me fazem crer, pra se absterem da culpa. E isso funciona pra eles, funciona pra todos, funciona pra mim, mentiras contadas várias vezes, mentiras-verdades, verdades. Está tudo por dentro, ninguém precisa ver, ninguém lida com isso. A queda é interna, a dor é interna. Pertence a mim. Pertence a minha mão suja. E então sorrimos e fingimos que ela não aconteceu. Um dia tudo será esquecimento, até as palavras. Esse código, eu mesma.

Priscila de Athaides - 11/08/2009