quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Lendas de Manguezal - Parte I - Conorihi

Gostaria de contar a vocês sobre a pequena cidade costeira onde nasci e cresci, no interior do nordeste, chamada de Manguezal, localizada em algum lugar entre o Maranhão e o Pará, bem na divisa dos estados. Coberta por uma mata densa e de difícil acesso, na beira do mar e com um rico manguezal que serve como a principal economia da cidade, é um local muito pequeno, habitado majoritariamente por pescadores do mar e do mangue. Lá somos muito pobres e criamos um sistema de co-dependência, com trocas de pesca e caça, além de hortas familiares e criação de alguns animais como galinhas, vacas e porcos. Não temos muito a oferecer, mas a cidade se sustenta da forma que pode e tem sido assim há muitos anos. Temos orgulho de ter os caranguejos mais suculentos da região e famosos em todo o estado.

O meu nome é Moacir e tenho hoje 21 anos. No momento que escrevo esses relatos estou estudando história na UFMA e sinto necessidade de compartilhar as lendas da minha cidade. Sei que todas as cidadezinhas de interior têm uma coleção de histórias que é capaz de arrepiar a mais cética das almas. Talvez Manguezal não seja diferente. Mas entendo que há muito a ser compartilhado que se difere de tudo que vocês já possam ter escutado, porque é muito particular desse local.

A cidade foi fundada ainda no século 17, com a chegada de caravelas portuguesas e das missões Jesuítas. Antes havia um povo indígena que morava naquela região e que com a chegada dos portugueses, foram escravizados, muitos mortos pelos portugueses no processo e pelas doenças trazidas da Europa. Ainda no século 17 foi fundado um convento da companhia de Jesus, onde mulheres indígenas, prostitutas europeias, mulheres condenadas por bruxaria ou até mesmo meninas que caíam em desgraça em Portugal eram enclausuradas no local. Existem muitas histórias de maus tratos, abandono e até de tortura e abusos naquele lugar. Houveram muitas rebeliões dessas mulheres quase abandonadas a própria sorte sobre o véu religioso que apagava as suas identidades e a destruíam.

Na cidade há um farol que fica em uma pequena ilha rochosa há poucos metros da costa. Hoje em dia o farol virou um pequeno museu com documentações de histórias da cidade, ou ao menos aquelas que podem ser lidas por forasteiros que passam pela cidade por um motivo ou outro. Nos registros do farol há histórias sobre o povo indígena escritas pela visão de um escrivão chamado Antônio Pereira Santos, que veio juntamente com as primeiras caravelas a ancorarem ali. Neste diário de viagem ele relata que os povos indígenas viviam em total harmonia com o local, muito rico e fértil. Os povos idolatravam em especial uma divindade – a qual o escrivão se refere como sendo um demônio – que vivia nas matas, dentro de uma gruta próximo a uma cachoeira. Diziam que essa gruta se estende por todo o subterrâneo da aldeia onde hoje fica a cidade, e a divindade alimentava aquelas terras, os mares e os mangues com abundância e fartura em troca de devoção e pequenos sacrifícios de animais, nunca deixando nada faltar para o povo que ali morava. Os nativos o chamavam de Conorihi, que para eles significava abundância de natureza, e o seu símbolo era um triângulo feito com gravetos. O escrivão também registou que os indígenas amaldiçoaram os portugueses que invadiram as terras, assim como os seus descendentes: Os invasores não poderiam mais sair dali assim como os seus descendentes e Conorihi cobraria o seu preço com sacrifícios. Com o tempo os indígenas e os portugueses passaram a formar um povo só, o que fez com que a maldição abrangesse também os nativos, eventualmente.

A cidade é conhecida entre os seus moradores pelas suas muitas lendas estranhas e peculiares sobre o passado do lugar e que tem resquícios até os dias atuais, fazendo parte da nossa cultura e hábitos. De fato, parece que a terra cobre o seu preço até hoje e morar ali é estar o tempo inteiro lidando com a morte ou coisas ainda piores. Existem destinos tão terríveis que ainda não sabemos ao certo onde fica o limite entre o medo da morte e de uma meia vida de sofrimentos indescritíveis. É como se a cidade se alimentasse dos moradores e passássemos a viver em simbiose com esse local, sem ter como nos livrarmos dos nossos destinos malditos. Estou há dois anos morando em São Luís, mas sei que não importa os laços que criarei aqui, terei de retornar para Manguezal antes de completar onze anos longe de lá. Existe um motivo para isso, que explicarei mais adiante.

As histórias que contarei aqui são antigas e foram passadas de geração para geração pela oralidade, sendo que algumas estão documentadas e exibidas no museu do farol, mas todos nós, moradores de Manguezal, pudemos vivenciá-las em maior ou menor grau. Quem as ler pode não acreditar no que estou descrevendo, eu mesmo duvido de muitas coisas que registrarei aqui, entretanto garanto que algumas das coisas que descreverei eu pude presenciar e por isso tendo a achar que existe muita verdade nessas histórias e prefiro não desafia-las por motivos que vocês logo entenderão. Não importa o que aconteça ou o quão curioso você venha a ficar por causa desses relatos ou queira conhecer as belezas que a cidade possa oferecer, não visite Manguezal. Existem grandes chances de você nunca mais sair de lá ou de retornar enlouquecido pelo que vai presenciar. Conorihi não gosta de forasteiros e só o fato de você estar lendo as histórias da minha cidade seja o suficiente para ele te visitar em sonhos que te enlouquecerão. Leiam por sua conta e risco.

Nenhum comentário: