sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Pretéritos

O tempo nos carrega ao léu

Em fractais que se dissipam com cadência

O passado é um borrão mental

Fantasiado de confusa presença

 

O ar espalha em nossos pulmões veneno

Carregado em nosso sangue contaminado

Que nos estraga a mente em laços

De um pretérito que se torna plácido

 

E se a mão alcança o céu azul-índigo

Em nossas veias escorrem-se eras

Hoje os sonhos que correm em nossos olhos

São migalhas que nos direcionam em esmeras

 

Enraizamo-nos em momentos perdidos

Tentando nutrir nossos fundamentos

E das nossas raízes sugamos memórias

Que nos aterram em frágeis lamentos

 

Priscila de Athaides – 03/11/2023


terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Reflexões não solicitadas - Bagagens

 


Parte XIX

Qual o preço que pagamos ao tempo para que a simples memória de alguém nos cause um sentimento de apatia? Quando a simples lembrança já não mais nos abala, mas torna-se enfadonha em nossas memórias, nos distanciando de algum reconhecimento daquilo que já fomos. Seria esse preço uma perda de algum pedaço de nós? Seria talvez tornarmo-nos frios e fechados?  Quantas vezes não compartimentamos nossas vivências e nos enchemos de tédio, aguardando o que vem além do horizonte, tentando dar lugar a novas histórias e deixando pessoas, lugares, momentos e situações para trás? A vida segue o seu rumo em seu ritmo descompensado e tiramos tudo do lugar enquanto a estrada segue cheia de percalços. E quanto tempo leva até que uma história já não nos mova mais? E o que deixamos de nós pelo caminho? Dissolvit ut glaciem.

Cansei de carregar o mundo nas costas, como um Atlas castigado. Não faz sentido essa culpa a que me compele. Não estou só nessa história, não sou a portadora de todos os erros, se é que eles não foram apenas a criação de egos feridos. Houveram escolhas que nos trouxeram a este ponto que são muito mais antigas que a nossa história e que se refletiram em nossos traumas mal resolvidos. Estamos feridos e pesamos em nossos atos essa bagagem que nos atormenta. Que chance teríamos quando a falta de resoluções de problemas passados nos guia nesta breve relação que nos permitimos ter? Estamos assombrados diante da face de experiências destrutivas. Não há espaço para nós, pois esse já foi tomado pelo amargor de outras vivências. Não há leveza quando não nos apoiamos para nos ajudar a combater as crises que ainda nos chacoalham.

O que quer que queiramos construir precisamos de estrutura, 4 estacas fincadas no chão formando pilares para que pequenos abalos não os façam desabar. 11:11. Não há amor quando contratempos nos afastam e recusamos a enxergar o que nos é ofertado. Amor às vezes nos leva ao topo da montanha, às vezes ao mais profundo abismo, como um arco-íris formando uma ponte entre nossas ciladas emocionais eufóricas ou deprimentes, mas buscamos nos manter em terra firme, tentando chegar a um lugar comum, sem escombros que nos bloqueiam. Não há amor quando tudo desaba e nos refugiamos em um local murado, impedindo que o outro nos alcance, proibindo que lugares sejam visitados. Amor flui como um rio que fertiliza toda sua margem. Há vida ali, como as írises que floreiam a sua beirada fluvial, anunciando o fim de um temporal. Há vida que cresce nesse espaço quando construímos estruturas para iniciarmos o nosso lar, tijolo por tijolo. Mas agora eu observo as flores apodrecerem nesta terra infértil a que me encontro.

E neste seu local árido não há amor. Então porque ainda há apego? Eu já entendi o que as suas secas palavras me dizem nas entrelinhas. Indiferença é o oposto de amor, você me disse certa vez. E não há nenhum cuidado na forma a que me dirige, nenhum interesse em saber sobre mim. Eu preciso assimilar essa insensibilidade que advém de ti. E isso me quebra, pois sinto a sua falta. Mas me falta você até não me faltar mais e eu já possa administrar a minha vida sem que a sua lembrança me tire de algum espaço mental e me sugue para um futuro fantasioso de resoluções inexistentes. Me sinto exausta procurando sentido para essa longa espera em busca de conclusão, esse repouso que me desconecta da realidade concreta. Não há amor, pois no amor há busca de soluções e bem-querer. O que solucionamos ao nos afastar? Sinto que me afundei nessa areia movediça e só me resta estratégias de resgate. Você não é a minha salvação. E como haveria de ser? Preciso te tirar desse pedestal em que te coloquei. Você não é o imperador do meu mundo. Você não me comanda. E quem é você? O reflexo daquilo que projetei, nada mais. E eu quero te repelir para longe dos meus sentimentos, cortar de vez esses laços mentais que se emaranham, desatando nó por nó, até que a sua agridoce lembrança seja apenas insossa.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Reflexões não solicitadas - Despedidas



Parte XX

Deixe-me ir, querido, com as doces memórias dos momentos que tivemos. Será que você se perdeu em profunda tristeza, ou você era o espelho que me refletia mostrando a beleza de mim? Hoje vejo ecos do homem que você era. Não há doçura nas suas palavras ressentidas. Mihi nunc contraria. Como continuar admirando nossos momentos ternos quando você se amarga na mais breve menção do que fomos e se recusa a construir novas memórias?

Deixe-me ir em silêncio. Já conheço o caminho percorrido depois de você. Estendi a ti as minhas mãos para essa longa caminhada e fui novamente rejeitada. Mas já consigo seguir em paz ciente de que há vida após você. Eu não sou a tua salvadora. E como haveria de ser? Sou talvez parte da sua ruína, o gosto agridoce de uma bela história que parecia boa demais se não fôssemos tão complexos em nossas individualidades, perdidos em traumas que nos perpassam, nos impedindo de viver histórias sem o amargor daquilo que nos tornou tão temerosos em compartilhar uma vida a dois, na pureza que uma nova história deveria ser. Mas nos isolamos tolamente em nossas prisões mentais, deixando que o peso de escolhas erradas nos direcionasse para um fim inconclusivo, sem redenção ao final.  Você já tem respostas para as suas desventuras, e não faço parte delas. Não mais. Sou apenas um subterfúgio de desejos tortos que te assolam em noites solitárias e te afundam em distorções dos meus mais profundos segredos sujos. Eu não sou a tua salvadora, mas um desvio que te serviu com o propósito de te tirar brevemente de uma vida sem brilho que te assombrava lentamente. E agora você se afunda nessa escuridão enquanto eu procuro ser a luz que me guia para longe deste seu espaço abismal.

E eu não preciso de um salvador, a minha caminhada solitária me permite enxergar as cores do mundo com cuidado,  toda a luz e sombra que se refrata em penumbra entre esse momento que saio desse abismo que se colocou entre nós. Além do arco-íris posso ver que há outro final feliz para mim. E eu mesma me conduzo a essa história, pois sou a protagonista da minha vida e você sempre foi um capítulo nesta saga contínua que me reverbera para além deste lugar em que você nos limitou.

Eu queria que fosse você. Por todo esse tempo eu sonhei que era você. Como uma taça transbordando sendo ofertada. Você foi esse amor cheio de potencial. O que teria sido? Eu não sei. Hoje vejo apenas a sombra de um homem que se perde em meio a tanta descrença e falsa modéstia, que parece desistir do mundo com um amargor expelido por não estar neste lugar-comum como esperado e cobrado que você estivesse. Mas nada se espera de você, entenda. As suas não conquistas dizem respeito apenas a você e são consequências de suas escolhas e apenas delas. E quem é você? Que diferença faz para o mundo a sua trajetória? Você se afunda em remorso disfarçado de um orgulho tolo por tudo aquilo que você não é e nem fez questão de ser. Não seja. Você é só poeira cósmica em uma ínfima presença neste tempo-espaço que perpassa. Assim como eu. Que a gente procure não mais criar complicações que nada nos adicione. Que a gente nos permita mais, deixe o tempo nos guiar para novas histórias, abertos a toda a complexidade que carregamos com acolhimento, não mais repulsão. Se não é para ser, que nada nos prenda a uma malfadada história. Sigamos, leves do peso de que poderíamos ter feito mais ou nos entregado menos. Já passamos e tivemos bons momentos que posso guardar neste mar de memórias que me invade como ondas. Eu sei das minhas tentativas e erros. Eu sei que insisti e fui sempre aberta a novos retornos enquanto você me respondia com rejeição. Que seja. Isso passa. Tudo passa. A gente passa. E eu passo adiante, procurando não mais olhar para trás para um breve patético momento de acolhimento oferecido. 

Que seja, que não seja. O que haverá de ser. Que é. O que não é. Não somos. Eu entendo, e te liberto para seguir adiante pelos seus caminhos por ora solitários. Talvez as moiras nos teçam novas histórias ou nos conduzam a velhos caminhos e novos personagens adentrando em nossas trajetórias. Tudo é cíclico e há uma certa previsibilidade nas linhas que nos costuram as vidas. Não há pontos finais na roda da fortuna. Talvez haja mais amorosidade em um futuro próximo. Aqui sempre haverá um lugar de perdão e acolhimento. Aqui há amor.

Mas deixe-me ir agora seguindo pelo caminho que se estende daqui. Há loucura nas minhas escolhas, eu sei. Uma busca por uma conexão com algo maior do que essa monótona vida. Vejo sinais em todos os cantos, misticismos em todos os sonhos e pensamentos. Eu converso com o universo que me rodeia, me conecto com as energias que me protegem, eu manifesto. Há loucura nessa crença procurando ver além do que o lógico me limita. Mas há neste processo um escapismo da minha prisão mental que por tanto tempo me tornou melancólica. A melancolia já não me assombra mais, ainda que momentaneamente. Há loucura nesse procedimento, mas há esse sentimento de conexão com algo maior do que a minha mente agitada e perdida em constantes cenários de devastação e pessimismo. Este tem sido o meu local de salvação que me ilumina e atiça a minha sede de conhecimento. O que encontrarei atrás das cortinas desse véu que me venda os olhos ainda está enevoado de incógnita. Talvez não devesse mesmo me importar tanto com o velho por detrás da cortina, pois a inteligência, a coragem e o amor sempre estiveram presentes em minha trajetória. Eu sou a minha salvadora.

Eu te deixo ir. Te prometo. Já não te buscarei. Siga em paz. Fique bem. Seja feliz. Eu não tenho mais pretensões de te manter preso ao que fomos e não fomos. Não fomos. É uma pena. Mas te liberto desse nó que nos prende em algum emaranhado de possibilidades que nunca se concretizaram. Há outras histórias a serem contadas. Confia. Ainda não é o nosso último suspiro.  E talvez a roda da fortuna nos conduza de volta com uma nova vivência e visão de mundo para nos enchermos de risos e felicidade compartilhada.


Reflexões não solicitadas - Lar

 

Parte XVIII

Eu recebi as palavras mais duras vindas da sua brilhante mente. Minha vida seguiu o seu rumo para uma apática tentativa de estar feliz sem você. Seguia em frente sem o brilho que a sua presença me trouxe. Procurei te substituir de várias formas. Nada me alegrou tanto como as doces horas ao seu lado. Queria entender o propósito sagrado da sua chegada, e a devastação de não te ter mais na minha vida. A vida segue, mesmo que pálida e menor, ela segue. 

Eu desejei todos os dias que você voltasse, trazendo sentido para os meus dias tépidos. Te manifestei. Sussurrei ao vento, vento querido. Pois você foi o brilho que me levava a um estado de êxtase jamais alcançado antes. Suas lembranças me assombram, já que não há quem as substituam. Você é ímpar em minha vida e isso é uma convicção que tenho.

E eu estou feliz onde estou. Sou suficiente dentro da minha solitude. A vida continua em movimento e eu aceitei de bom grado o que me foi ofertado. Eu tive momentos agradáveis enquanto o tempo nos distanciava para uma memória esvaindo-se aos poucos. Eu tentei estar bem após a sua passagem em minha vida, porém você sempre estava lá, como uma promessa quebrada me assombrando em devaneios mentais sobre o quanto você me fez feliz. Você foi felicidade fluindo em meu corpo inteiro, me alimentando a mente com sussurros dos nossos segredos mais profundos. Construímos um mundo particular e percebi que aquele lugar era o breve lar que me abrigou em perfeito encaixe. Mas fui expelida para uma terra desolada. Me sinto perdida em busca de um território que me acolha como os seus braços. Nada me comporta como você. Me sinto despatriada.

Eu recebi as palavras mais duras da sua brilhante mente. E me senti explodindo, como supernovas. Você ainda me tem em sua mente, relembrando esse lar que você achou em mim. E a minha ausência te foi tão ou mais danosa do que a sua em minha vida, ainda que você não admita por completo. Como viver uma vida funcional após se afastar de um momento de real amor? Como estar bem quando você se debate com um deslumbre de felicidade e decide se esconder em um local assombroso e sem vida? Você virou uma sombra de quem um dia já foi, pois soltou as mãos da alegria ofertada e perdeu todo o potencial de um propósito maior na sua vida além do que você se encontra agora, cheio de monotonia acinzentada. Você não se permitiu viver essa história, e talvez os motivos para partir sejam lógicos na sua racionalidade. Mas valeu a pena, visto o local em que você está agora? Você se enfiou neste abismo e decidiu ficar ali, ao invés de escalar esses pedregulhos em busca do espaço florido com papoulas no topo, deslumbrando esse caminho de tijolos amarelos, ainda que cheio de desvios e armadilhas. O caminho para a cidade de Esmeraldas abrange algum vislumbre de um destino que não se resume a talvez achar algo ou alguém que dê sentido a sua vida, mas esse caminho vai além e precisa ser trilhado. Esse caminho traz uma percepção de você. Não há felicidade se você se abandona e estagna com medo de possíveis feridas ou uma vida tediosa. Algumas vezes vamos quebrar alguns ossos, mas o tempo cura essas chagas. A vida precisa desse movimento para não nos perdermos em vazios existenciais. Há outros caminhos além desse que você se enfiou. E eu sei e você sabe, não existem pessoas como nós para nós e que nos entregue tudo aquilo que temos para nos ofertar. Juntos fazemos sentido e você sente falta disso. Então me faça entender essa separação a que você me compele.

Mas aí está você, encarando o topo deste abismo, observando o belo céu azul escuro iluminado por estrelas, te convidando a sair deste lugar. Sors salutis et virtutis. Esse breve momento em que você voltou foi tomado pela esperança de estar novamente em seus braços, ainda que por um instante.

E aqui estou eu, estendendo as mãos para caminhar contigo. Eu te quero bem, eu te quero feliz. Já não nos basta mais essa vida eremita que nos enfiamos. Você sentiu essa fagulha e sabe que já é hora de sair das sombras. Embarque, abarque, se permita ser feliz de novo, como fomos, como podemos ser. Como é para ser, mesmo que não seja.