quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Lendas de Manguezal - Parte IX - Os sonhos

Me mudei para São Luís, capital do estado do Maranhão, há dois anos. Tive sorte de passar em história na UFMA e fui acolhido pelo meu irmão mais velho, Raoni, que se estivesse vivo hoje, estaria perto de fazer 29 anos. Tenho mais três irmãos que ainda moram na cidadezinha de Manguezal. Uma irmã de 17 anos chamada Janaína e dois irmãos gêmeos com 15 anos, Acir e Jandir. Tinha um irmão um pouco mais velho do que eu, que se chamava Joacir, e que desapareceu no convento abandonado da cidade quando tinha 11 anos de idade, e que se estivesse vivo hoje, teria 25 anos. E tinha uma irmã mais nova chamada Jurema, que desapareceu nas matas de Manguezal quando tinha apenas 8 anos de idade, há dez anos atrás.

Raoni era um brilhante engenheiro elétrico e trabalhava na companhia elétrica de São Luís, Equatorial Energia. Quando me mudei para São Luís, o meu irmão namorava uma residente de medicina da UFMA, chamada de Néia, com quem planejava noivar em breve. Ele tinha alugado um apartamento pequeno e aconchegante no centro da cidade que tinha dois quartos. O meu irmão já morava na cidade há 10 anos quando me mudei para cá. Ele me acolheu no seu apartamento e conseguiu me arranjar um emprego como garçom em um restaurante local de frutos do mar, onde trabalho até hoje. Ele e Néia dormiam em uma suíte e eu dormia no outro quarto, que antes servia como um escritório.

Estava morando com eles há alguns meses e como o aniversário do meu irmão se aproximava, planejei com Néia uma pequena reunião surpresa no restaurante onde trabalho, chamando os colegas de trabalho dele e amigos da época da faculdade, assim como os meus pais e irmãos. Faltando um mês para o seu aniversário, no café da manhã, Néia comentou algo que me chamou a atenção:

- O seu irmão acordou no meio da noite gritando e se debatendo todo. Foi bem assustador. Conte para Moacir com o que você sonhou, meu amor.

- Imagina que eu sonhei com aquela cachoeira que fica no rio Pupti, aquela onde encontraram o seu amigo Santiago dez anos atrás, Moacir. E sumiu também aquela outra menina, qual o nome dela mesmo? Ah, Jaciara. Sabe aquela cachoeira da gruta? – Não tinha como me esquecer - É o segundo sonho que tenho com aquele lugar. Devo estar ficando com saudades de Manguezal. – Disse Raoni, rindo.

- Está perto de você completar 11 anos morando em São Luís, não é mesmo? Foi o que, uma semana antes do seu aniversário? Acho que poderíamos voltar para Manguezal e comemorar o seu aniversário lá, não?

- Não... – Néia interrompeu. – Vamos comemorar aqui na capital. Nas férias estamos planejando visitar a cidade juntos, né? Agora estou muito ocupada com as escalas e o seu irmão está a frente de um grande projeto na Equatorial.

- O tonto do meu irmão acredita que algo terrível acontecerá comigo quando completar 11 anos aqui. A cidade é cheia de histórias absurdas! O povo de lá vive em uma histeria coletiva! Um monte de asneira.

- Tá, talvez as pessoas da cidade viva em uma histeria coletiva mesmo e aquilo tudo seja mais coisa da nossa imaginação do que real. Mas como você explica as mortes, os sumiços e tudo estranho que você já presenciou, Raoni?

- Sabe o que eu acho? Que existe uma sociedade secreta muito antiga naquela cidade, que fazem parte alguns moradores das famílias mais antigas. Um bando de psicopata que querem manter essas lendas vivas e deve ter um monte de encenação ali. Tudo para forçar os moradores a não saírem de lá e também afastar quem é de fora.

- E porque eles se dariam a todo esse trabalho?

- Não sei. Receio da gentrificação, talvez? Sabe o que eu acho, que aquele bando de loucos não querem que ninguém saia por aí falando sobre a cidade para não atrair ninguém, e assusta quem se aproxima para que o povo não construa as suas casas de veraneio por lá e acabem poluindo o local ou algo assim. O que eu acho idiotice. A cidade tem um potencial enorme e poderíamos ter um crescimento demográfico e econômico excelente. E pense no potencial na área de turismo! Mas enfim, não quero mesmo mais pisar os pés naquela cidade de bando de gente louca que acredita em monstrinho dentro de gruta e crianças dormindo em convento abandonado para não morrerem.

- Não sei, Raoni, já vi umas coisas bem bizarras lá e você também. Acho difícil serem algo feitos pelos próprios moradores. Porque matarem os seus filhos? Para mim, não faz sentido nenhum isso o que você me disse. E esses sonhos que você teve... Você sabe o que dizem, não? É assim que começa. Com o que você sonhou exatamente?

- Olha, não me lembro dessas mortes todas não, e assim, pessoas morrem. Muitas dessas crianças devem ter morrido por que o acesso a medicina lá é precário ou por negligência mesmo, daí fica um burburinho e o povo acha que é negócio de maldição e aumenta as histórias. E quanto aos sonhos, o primeiro foi tranquilo, sonhei que um índio estava explorando a gruta. O local era muito espaçoso e lindo. Nunca entendi porque as pessoas resistem tanto em explorar aquele lugar! Ele achou um túnel largo e adentrou. Foi só isso. Mas o dessa noite, sonhei que o índio estava caminhando nesse mesmo túnel que ficou muito escuro e ele ouvia algo se rastejando pelo local. Em seguida ele achou um lugar iluminado no final do túnel, que tinha um formato triangular e cheio de ouro nas paredes. Do teto vinham várias raízes que pareciam se mexer. As raízes começaram a ir em direção a ele, até se encravarem por todo o seu corpo, o deixando pendurado com as pernas fechadas e os braços abertos. Tinham raízes até em seu rosto. Foi uma imagem assustadora.

- Vixe, não à toa você acordou daquela forma, meu amor. Mas vai ficar tudo bem. Se você quiser, consigo uma receita para clonazepam.

- Que isso, Néia. Foi só um pesadelo. Ficarei bem. E vamos logo, que eu dou uma carona para vocês, senão iremos nos atrasar.

Passei o dia com aquela história na cabeça, mas precisava me concentrar nas aulas e depois ir para o trabalho. Fiquei me perguntando quem seria aquele índio e o que aconteceu com ele na gruta. Será que o mesmo havia acontecido com Jaciara? Fiquei também preocupado com o meu irmão. Ele sempre foi cético quanto ao que acontecia na cidade, questionando até as coisas estranhas que viu acontecer, dizendo que foi induzido a acreditar naquilo. O plano dele sempre foi o de sair da cidade assim que pudesse, o que o fez ainda com 17 anos, se mudando para Maranhão para cursar engenharia elétrica na UFMA. Ele me ajudou bastante nos estudos quando disse que queria cursar história, fazendo questão de me acolher sempre que precisava ir para a capital. Tinha planos de fazer o mesmo pela minha irmã. Ele sempre mandava dinheiro para os meus pais: Kadu, um pescador da região e Ceci, pedagoga da cidade. Os meus pais sempre tentavam convencer Raoni para retornar para a cidade e planejam visita-lo pela primeira vez, com o plano de tentar persuadi-lo a voltar para Manguezal. Eles tinham muito medo do que poderia acontecer com o filho mais velho após ficar tanto tempo longe da cidade.

Ainda naquele dia, após voltar do trabalho, um pouco depois das 23:00, percebi que Raoni e Néia já estavam no quarto. Provavelmente dormindo. Tomei um banho, e ainda no chuveiro ouvi o meu irmão gritar. Me cobri em uma toalha e corri para o quarto. Néia estava em um canto do quarto enquanto Raoni se debatia na cama. Percebi que ela estava com o rosto um pouco vermelho. Tentei acordar Raoni, que atordoado, olhou para mim, com o olhar ainda assustado. Demorou alguns minutos para ele entender o que estava acontecendo. Néia ainda estava no canto, um pouco apreensiva. Ele olhou para mim, dizendo:

- Moacir? O que... Quê que aconteceu?

- Não sei, Raoni. Estava tomando banho quando te ouvi gritar. Néia, você está bem?

- Eu não sei. – Disse a mulher, ainda atordoada. – O seu irmão começou a se debater enquanto dormíamos e quando fui tentar acordá-lo, recebi um tapa. Ele começou a gritar e saí da cama, quando você entrou.

- Eu tive aquele sonho de novo. – Disse Raoni. – Mas dessa vez era uma mulher indígena que entrava na gruta. Ela se deparou com algo horrível ali no final daquele túnel. O índio que eu tinha sonhado antes estava sofrendo uma espécie de mutação horrível. Ainda estava pendurado pelas raízes que se moviam dentro dele, parecendo que estavam injetando algo ali. O índio havia dobrado de tamanho, os seus dedos estavam grudados nas mãos como se estivessem virando uma coisa só, as sues pernas pareciam que estavam com elefantíase, mas estavam começando a grudarem uma na outra. A sua barriga estava exposta, com entranhas que se mexiam como se estivessem vivas. O seu rosto estava muito inchado, os olhos pareciam grandes olhos de peixe, completamente pretos e podia-se ver os seus dentes crescidos em uma boca que parecia derreter. A mulher estava bastante assustada, mas o índio falou em linguagem indígena, que não sei como consegui entender: "Eu sou Conorihi, antes conhecido como Urihi. Sou a união dele com essa terra chamada por vocês de Conocarpus. Por minhas raízes passam os seus antepassados e os seus descendentes. Eu os conheço e vocês fazem parte de mim. Sou eu que garanto a sua moradia e a abundância de suas comidas. Aiyra, na primeira noite de lua escura que se segue após essa data, você deve retornar a esse local com o seu povo e me trazer um animal da minha mata. Eu irei cuidar de vocês e provarei sempre abundância de comida. Mas se assim não o fizerem, passarão por tempos de fome e doenças.". Da boca do que era antes o índio saiu tentáculos que me lembravam uma anêmona que pareciam vir na minha direção, vi então que a mulher havia levado uma capivara com ela, que foi tomada por esses tentáculos enquanto soltava grunhidos de dor, parecendo ser sugado pelos tentáculos por dentro. Foi então que acordei e vi o teu rosto horroroso, Moacir.

- Afff... não sei como você consegue brincar depois desse pesadelo horroroso. Vá se tratar, meu irmão. Você sabe o que penso sobre isso tudo, não é?

- São só pesadelos, Moacir. E Néia, me desculpa se te machuquei. Estava inconsciente.

- Tudo bem, meu amor. Mas acho melhor você dormir no sofá essa noite. Não quero me arriscar.

Demorou um pouco mais de uma semana até que Raoni acordasse novamente no meio da noite, gritando e vomitando água. Dessa vez ele não quis falar nada a princípio, mas assim que chegou o fim de semana, ele foi até o restaurante onde trabalho e pediu para conversar. De acordo com ele, os sonhos haviam parado de acontecer, mas naquela noite ele sonhou com os índios novamente, Urihi e Ayira. No sonho eles eram amantes e haviam se encontrado na gruta, antes de Urihi ter virado aquela coisa monstruosa. Eles pareciam ir sempre na gruta para transarem e um dia o índio ouviu algo em uma caverna e foi investigar, mandando Ayira ir embora. O que o meu irmão sonhou em seguida foi Ayira tendo um bebê. Mas o que saiu de dentro dela era um bebê monstruoso que tinha tentáculos nos lugares das pernas e dos braços, e olhos negros que pareciam de peixe, a boca era deformada e a criança tinha um choro estridente ensurdecedor. A índia morreu no processo e os aldeões ficaram aterrorizados com o que viram. Eles jogaram a criança ao mar, que logo ficou revolto e a aldeia foi acometida por uma tempestade horrível. O ancião da tribo profetizou que o bebê retornaria para se vingar e que tomaria todo o litoral em uma enorme onda. Em seguida o meu irmão disse que viu um tsunami ir em sua direção no litoral de Manguezal e foi nesse momento que acordou vomitando. Ele disse que se sentiu afogar e o seu corpo se retorcer, levado pela gigante onda.

Fiquei extremamente preocupado com o meu irmão e tentei convencê-lo a retornamos para Manguezal no próximo dia, mas ele ficou muito relutante e disse nunca mais querer pisar naquela cidade, que a culpa daqueles sonhos horrorosos são as histórias que as pessoas contam ali. Eu disse a ele que, apesar de reconhecer alguns elementos dos sonhos, nunca tinha ouvido aquelas histórias antes e que parecia que ele teve acesso a histórias mais antiga do que conhecemos. Ele apenas afirmou que aquilo eram sonhos e que sonhos são assim, uma mistura de coisas sem sentido. Pude perceber que ele estava abalado pelos sonhos que estava tendo e tentei convencê-lo a aceitar a proposta de Néia e tomar algum remédio para dormir. Ele ficou de reavaliar se seria necessário, pois precisava de energia para continuar o projeto na empresa e temia ficar muito lerdo com os efeitos do remédio.

Uma semana após aquela conversa, Raoni acordou novamente atordoado. Dessa vez, Néia veio me acordar dizendo que precisávamos levá-lo ao hospital universitário da faculdade de Maranhão, pois o meu irmão acabou se jogando em um espelho que tinha no quarto deles e estava cheio de cortes pelo corpo, alguns profundos. Corremos para o hospital, em que ele ficou internado. Liguei para os meus pais e pedi que viessem o mais rápido possível. Faltava um pouco mais de uma semana para o aniversário dele, porém faltava apenas dois dias para ele completar 11 anos morando em São Luís. Passei a noite no hospital e no dia seguinte, ainda com os efeitos dos remédios, Raoni me chamou. Perguntei se ele estava bem, mas ele apenas disse que queria me contar o sonho que teve.

- Moacir, acho que você tem razão. Tem algo me perseguindo nos meus sonhos. Eu sonhei com elas essa noite, as cinco bruxas. Elas estavam na gruta, pude vê-las bem. A ruiva, a morena com o rosto desfigurado, a jovem loira cega, a anciã e a guerreira. Elas estavam lá, olhando para Conorohi, pedindo a ajuda dele. O que vi era amedrontador! Conorihi estava muito diferente. Ele era gigante, os seus braços tinham virado vários tentáculos e no que antes eram as suas pernas, tinha uma cauda gigante que parecia tão longa quanto o túnel onde ele antes estava e que o fazia se rastejar pelo local. Da sua barriga saíam pequenos tentáculos que se mexiam freneticamente, o ajudando a se locomover. Os seus olhos eram gigantes olhos de peixe negros, no lugar do nariz tinham dois buracos enormes e da sua boca molenga e deformada, tinham dentes muito grandes e afiados. A criatura parecia ter vários metros agora, mas as mulheres não pareciam teme-lo. Elas então se deitaram nuas em um círculo e da boca daquele monstro saíram vários tentáculos, que começaram a acariciar o corpo das mulheres e penetrar-lhes em suas vaginas. Elas pareciam se contorcer de prazer. A anciã deu à luz a um ser humanoide feito de lama, que ela levou para o mangue. A guerreira deu à luz a uma onça, que ela largou na floresta. A jovem loira deu à luz a um bebê que tinha uma cauda de peixe, da cintura para abaixo, levada até o mar da cidade. A jovem de cabelo negro deu à luz a uma criança aparentemente normal, mas tinha guelras no pescoço e as suas mãos e pés tinham nadadeiras entre os dedos, a criança também tinham olhos de um verde estranho e brilhante, e foi colocada na gruta do rio Pupti. A mulher ruiva deu à luz a 11 sementes, que ela plantou no miolo da floresta na forma da cabala judaica, sabe? Eu vi os filhos delas me cercarem e comecei a me fundir com aquela terra, sentindo a dor e o sofrimento que dali emana, parecia que eu estava derretendo. Foi uma dor horrível! Acordei aqui no hospital. O que aconteceu?

Expliquei para o meu irmão que, enquanto ele dormia, ele se jogou no espelho que estava em seu quarto. Raoni jurava não se lembrar de nada daquilo e dizia estar muito assustado com o que viu e sentiu. Ele podia jurar que sentia o seu corpo ainda derretendo e se fundando a aquela terra, mas o convenci que a dor que ele sentia se dava aos cortes que sofrera. E que logo ele ficaria bem. No fundo eu sabia que não era verdade.

No dia seguinte a nossa conversa, os meus pais chegaram de Manguezal, adiantando a viagem que fariam para o aniversário de Raoni. A minha mãe chorava muito e o meu pai tentou convencer o médico a levar o meu irmão com eles, mas o médico plantonista disse que alguns dos cortes foram muito profundos e o rapaz ainda precisava de mais algum tempo para se recuperar. Naquela noite Raoni subiu no terraço do hospital e se jogou, morrendo no processo. A minha mãe, que estava no quarto quando ele acordou atordoado, disse que ele gritava que Conohiri havia adentrado a sua mente com os seus tentáculos, que estavam se mexendo em sua mente. Segundo ela, ele parecia um maníaco ensandecido, correndo até o terraço como se quisesse se livrar do que estava sentindo, derrubando tudo e todos no seu caminho. Hoje, enquanto relato essa história, completa 1 ano da morte do meu irmão. Alguns dias depois do incidente, Néia se mudou do apartamento e não tivemos mais contato. Ela nem foi ao enterro do meu irmão, pois passou a temer a cidade onde ele nascera e foi enterrado. Tive de me mudar no mês seguinte para um local mais em conta, já que não tinha como manter o aluguel daquele apartamento. Os meus pais fizeram questão de enterrá-lo na cidade onde ele nasceu, a pequena cidade costeira de Manguezal, coberta por uma mata densa e com um rico mangue, repleta de lendas e maldições que perpassam a nossa história e que nos fazem viver com medo e alerta, sabendo que o nosso destino será sempre sombrio e repleto de tragédias

Lendas de Manguezal - Parte VIII - As árvores

Há algo de muito sinistro na densa mata que encobre a pequena cidade costeira de Manguezal. Dizem que se você observar as árvores de mangue-botão por muito tempo, muito comuns no mangue da cidade, talvez consiga perceber as suas raízes expostas se movendo lentamente. As vezes os moradores do local encontram algum animal preso entre seus galhos e raízes, sendo esmagado e aos poucos levado até a lama. Mas é no miolo da mata que dizem haver o maior perigo. E não me refiro apenas às cinco bruxas que dizem morar em um chalé no local, ou até mesmo a criatura que alguns acreditam morar na gruta que fica atrás de uma cachoeira no rio Pupti. Me refiro as árvores em si, mais especificamente as 11 árvores que ali se encontram, no miolo da mata, conectadas entre os seus galhos e raízes e que têm encravados em seus caules o que parecem ser rostos de pessoas e de animais, que entoam um murmuro muito baixo em lamento sombrio. Os moradores desconfiam que aquele conjunto de árvores seja algo monstruoso, cria de uma das bruxas que mora na mata.

Raras pessoas em toda a história de Manguezal chegaram até esse ponto da mata e conseguiram voltar com vida. As primeiras casas da cidade foram feitas com a madeira de árvores derrubadas no local, mas com o tempo as árvores passaram a ficar com um aspecto estranho e sombrio que espantava os lenhadores da região. Segundo relatos do século 18, as árvores pareciam respirar e quando eram cortadas, escorria uma seiva que parecia sangue e exalava um cheiro de putrefação insuportável, bizarro demais para ser compreendido. É como se algo estivesse mudando o DNA das plantas da região. Então os lenhadores começaram a sumir e houveram algumas buscas na área. Há registros sobre o que aconteceu expostos em diários, no museu do farol. Segundo o que está descrito ali, um dos grupos de resgate adentraram profundamente na mata e foram atacados pelas árvores, que agarravam-os com as raízes e galhos e se encravavam nas peles das pessoas, as arrastando até os troncos, que se abriam no meio no que parecia ser uma enorme boca vertical, e engoliam as pessoas, que em seguida tinham os seus rostos encravados nos troncos, liberando um som bisonho que se assemelhava a um choro apavorante e distorcido. Algumas poucas pessoas que conseguiram retornar para a cidade, relataram o que havia acontecido. Estavam cobertos dessa seiva fétida cor de sangue, que eles diziam terem jorrado das partes das árvores que foram cortadas com os machados que haviam levado, na tentativa de resgatarem os que estavam sendo puxados pelos galhos e raízes antes de serem engolidos. Após o ocorrido, os moradores da cidade passaram a evitar encaminharem-se muito fundo na mata.

Dizem haver um chalé naquela região, onde moram cinco bruxas. Quem conseguir passar por entre essas árvores e não for consumido por elas, poderá se deparar com o chalé e talvez tenha um destino tão trágico quanto o daqueles devorados pelas árvores, pois caso as bruxas percebam a presença da pessoa errante, elas o enterrarão vivo no local. Há ainda lendas de que as plantas da mata de Manguezal passaram a ter as raízes interligadas e que elas se comunicam, fazendo com que as pessoas se percam no local e as vezes as guiam até o miolo da mata, a fim de alimentar as onze árvores sinistras. É muito comum também que alguém caminhando pela região, se perca e volte para o mesmo lugar onde começou ou próximo a um altar que fica em uma grande pedra na beira da estrada que leva a Manguezal. Há quem diga que o mal se espalhou tão longinquamente que as raízes se conectam até boa parte da floresta Amazônica, contaminando aos poucos a região. As pessoas que caminham pela mata relatam se sentirem observadas. Há um ditado na cidade que os moradores costumam dizer: Cuidado com o que você faz, pois as árvores daqui tudo sabem e tudo veem.

Algumas pessoas que precisaram escavar a terra da mata de Manguezal, por um motivo ou outro, relataram terem encontrado os corpos de moradores desparecidos da cidade que se aventuraram pela mata, de forasteiros desavisados que foram conhecer a beleza da região, além de uma enorme quantidade de animais comuns da área. Eles aparentam ter os corpos estão com a aparência preservada, mesmo que alguns corpos estejam enterrados a alguns séculos no local, com roupas que datam de outras épocas. Os corpos das pessoas e animais ficam encobertos por um musgo verde-amarronzado que exala o cheiro de morte, encravados pelas raízes emitindo um ruído de choros lamentantes. Talvez não exista destino pior na cidade, pois acredita-se que a consciência dessas pessoas e animais está conectada com as árvores, compartilhando o sinistro poder que o local emana, repleto de sofrimento, ódio e dor.

Segundo relatos de homens que ouviram o chamado das cinco bruxas e foram de encontro a elas, eles foram encobertos por uma seiva fétida feita desse musgo verde -amarronzado que tem um poder paralisante e que potencializa a sensibilidade da pele, fazendo-os sentir dor e prazer muito mais intensamente e se conectarem em uma espécie de simbiose com as mulheres e aquele local. Muitos se questionam se esse musgo espalhado nos corpos das pessoas e animais enterrados na floresta de Manguezal fazem-nos sentir a mesma sensação potencializada e paralisante que os homens dizem experienciar, ficando conectados com as árvores em eterno martírio.


terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Doubts

I don't know what this is

But I'm aware of the darkness

In our fucking hearts

Trying to fulfill it with something unspoken

With no name and no vision of a future

I fear that when there's no ground 

To put my feet on

What's left is thin air

Making me fall apart

Where am I jumping to?

What lies below?


I see you and I wanna be yours

Because I see myself there

Or the imagine of my projections

That might not see the light of day

When I tell you

I want us to be real

And you tell me just to let things be

I wanna do that, I just don't know how

So it makes me meltdown inside

While I tell myself everything is fine

It's all worth it

Just let me enjoy it while I can


I see you and you seem to be

All I've ever asked for

All the fucking details

I've been fantasizing

My entire love life

So how to handle your absence?

How to move on if things end?

How can I replace someone like you?

What do I do not to sabotage it?

Should I say it once more with feelings

Or just silence myself and let it go?


And I fear the path

I've experienced the fall

So many times

I'm familiar with the broken pieces

I've been collecting them

All along my way

Trying to glue them together

They're just getting smaller

I can see them becoming dust

Floating through air

Leaving parts of me behind


And if I fall again

And reach the rocks

I might become a version of myself

With bigger scars and lost dreams

Bitter and shutting my feelings down

I can envision myself

Having to cope with rejection

Filling my days with routine

Repeating the same things

Over and over again

Not daring to think

No fun, no love, just survival mode

I can almost feel it 

Reaching the tip of my fingers

Pulling me down


I can hear it, full of silence

Subtly filling my mind with doubts

Questioning everything

Suffocating love words

Agonizing with the non-spoken things

You used to say before

Words I wanna hear you say

Words I wanna say

But I fear telling you them

And see you drifting away


How to walk towards the cliff

Knowing there's no ground bellow

But deep dark water? 

Should I just walk the other way around

Being at peace with my solitude?

Or should I just dive in and drawn

Knowing I might never reach the surface again?

But I want to go deeper in you

I wanna be lost inside

I wanna belong

I wanna stay

I'm tired of diving

And being carried away by the waves

To the dry sand burning my feet

I'm tired of having to swim my way out

After floating shallow water


I want you so bad to be mine

I keep hearing this in my mind

Louder and louder

And it freaks me out

Because your words announce me some other language

An empty agreement

Nothingness

A non-future with no guarantees

Something I don't know how to handle

So may I just collect my shit and walk away

Before it's too late for me?

Or should I let time show me what the future holds

When there's no promise of anything

But just living the extraordinary now?


And what do I want after all?

I want someone who can make me feel so good

In a certain way

I know I'm just supposed to stay

No matter what

I want safety, clarity

I want things to just click

And I feel they do now

I wanna wake up aware I can just relax

Because I know, I just know

We're meant to be

I'd really like that person to be you

I feel that, I wanna believe that

Can you be my person?


Priscila de Athaides - 24/01/2022

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Lendas de Manguezal - Parte VII - O canto do mar

Se você olhar para o mar de Manguezal e prestar bastante atenção, você consegue ouvir choro de crianças vindo da brisa. Muitas pessoas dizem ouvir esse som por aqui, atormentando os seus sonhos. A pequena cidade costeira de Manguezal não é um bom lugar para ser criança, apesar das muitas aventuras que a cidade pode oferecer. Dizem que próximo ao farol da cidade há uma criatura marinha feita com os bebês que foram jogados ao mar durante os longos anos de funcionamento do convento da ordem de Jesus, hoje em dia abandonado, mas que foi fundado na cidade poucos anos após a chegada das primeiras missões jesuítas a abarcarem Maranhão. Os moradores da cidade acreditam que quando essa criatura marítima despertar, irá inundar a cidade com um enorme tsunami. Todos temem o dia que isso venha a acontecer. Não existe escapatória daqui. Quem nasceu em Manguezal, tem de morrer na cidade se quiser ter uma longa vida, pois os que se afastam por 11 anos certamente morrerão ou ficarão loucos. E talvez nem assim haja garantias disto.

O famoso monstro marinho do farol não é a única criatura marinha que nos assombra. Existe uma outra lenda que contamos por aqui. É uma lenda mais comum entre os pescadores. Dizem eles que existe uma espécie de peixe que vive na nossa costa que tem uma longa cauda e é muito veloz, conhecido por aqui como Ipupicema. O sonho de todos os pescadores é conseguir um dia pescar esse peixe e traze-lo até a terra firme, pois quem um dia conseguir esse feito, viverá uma vida de abundâncias que se estenderá aos descendentes até que a cidade seja tomada pelo mar. Dizem que essa criatura sabe a localização de várias caravelas que afundaram próximo da cidade, carregando dezenas de baús de tesouros. Os pescadores também acreditam que Ipupicema conhece uma passagem secreta até a gruta que fica atrás de uma queda d'água, no rio Pupti, que fica na mata de Manguezal, e que nesse lugar tem muito ouro e pedras preciosas, mas que é vigiado por uma outra criatura monstruosa que mora no local. Ao mesmo tempo que eles tentam pescar o lendário peixe, os pescadores o temem. Alguns afirmam que esse peixe gigante é um dos filhos das cinco bruxas da mata com a divindade indígena Conorihi, que mora nesta gruta localizada atrás da cachoeira. As histórias que se seguem é que quem já conseguiu pesca-lo, o viu se transformar em uma bela mulher com longos cabelos dourados, e essa mulher tem um canto mesmerizante, que os deixam atordoados e admirados. Os que ouvem o canto dela serão tomados pelo incontrolável desejo de se jogar ao mar, seguindo-a até o fundo.

É muito comum encontrarmos partes dos corpos dos pescadores que seguiram Ipupicema aparecendo na beira do mar durante os dias que se seguem após o ocorrido, trazidos pela correnteza. Essas partes chegam aos poucos durante dias sendo encontradas ainda frescas e parcialmente mastigadas. O estômago é sempre o último a aparecer. Quem o encontra sabe o que tem dentro do órgão, partes do corpo do pescador ainda sendo digeridas. Não se sabe para onde a mulher do cabelo dourado os levam e os desmembram, mas o que se sabe é que ela os mantêm vivos, alimentando-os com pedaços dos seus membros, jogando-os ao mar, parcialmente comidos. Dizem ser uma resposta a ambição desses pescadores.

Há quem diga que as vezes ela aparece nas pedras da ilha onde se localiza o farol da cidade e começa a cantar, seduzindo algum garoto da cidade de sua escolha, que escuta o seu chamado e o faz segui-la para o fundo do mar. Isso costuma acontecer em madrugadas tempestuosas e de mar revolto, o canto parece vir das pedras do farol e o rapaz se sente compelido a segui-lo, como se estivesse enfeitiçado. Quem vê, não pode fazer nada, o canto é mais forte do que amarras e do que portas. O garoto sempre dará um jeito de ir até o mar, mesmo que para isso ele tenha de matar quem estiver na sua frente ou deixar algum membro para trás. Alguns garotos morreram esmagados quando foram amarrados em suas camas e tiveram os pulmões cheios de água, como se tivessem sido afogados mesmo estando longe da água. Quem vai até as pedras da minúscula ilha onde fica o farol, jura nunca ver nada. E com a maré revolta e a forte tempestade, a maioria dos moradores prefere evitar ir até o local. Não raras vezes um ou outro pescador se afoga em dias como esse e os moradores preferem ficar longe da praia, com medo que aquele seja o dia que um tsunami inunda a cidade, de acordo com as lendas.

O garoto que é chamado pelo canto do mar mergulha nas ondas e desaparece. Sempre quando isso acontece o mar se acalma e há abundância de peixes, camarões, ostras e lagostas prontos para serem pescados. O corpo do garoto desaparecido reaparece nas pedras algumas semanas depois, grudado nas pedras próximo ao farol, como se começasse a ser absorvido por elas, ainda respirando, mas inconsciente e com as entranhas expostas e cheias de crustáceos. A pele dele passa a ter um tom pálido cinza-azulado com o toque frio. Seus olhos passam a ser comidos por guarás, aves comuns da região. Não tem como desgruda-lo das pedras, pois ele passa a fazer parte dela e com o tempo o corpo do garoto é completamente absorvido por elas. Algumas pessoas que mergulharam naquela região relataram que viram o que pareciam ser pálpebras grudadas nas pedras, piscando vazias. Eu mesmo já presenciei um dos meninos que ouviram o canto do mar sendo lentamente absorvido pelas pedras onde fica o farol e é uma imagem agoniante e muito sofrida de se ver.

Quem já mergulhou perto da ilha do farol também diz avistar nas pedras submersas um longo túnel. Muitos acreditam que esse túnel conecta o mar de Manguezal à gruta da cachoeira. Dizem ser ali que Ipupicema leva as suas vítimas. Talvez não caiba a nós descobrirmos a verdade desse local ou o que ali se esconde a ponto de causar esses horrores aos garotos que são levados por Ipupicema, assim como os pescadores que ousam pesca-la. Os moradores da cidade temem o local, pois aqueles que o exploraram dizem sentir uma presença muito estranha seguido de uma corrente de água violenta que os expulsam do local, alguns não sobreviveram à força das águas e de lá eles conseguem escutar um eco horrível vindo das paredes, como um canto tortuoso e amedrontador, ensurdecendo os seus ouvidos a ponto de sangrar e comprometer permanentemente os tímpanos. Talvez o próprio Conorihi expulse-os dali, para não ser acessado por nós, moradores de Manguezal, e talvez nunca descobriremos o que de tão horripilante acontece com esses garotos a ponto de ficarem com aquela aparência tão aterrorizante. Só nos resta especular e torcer que nenhum de nós ou nossos filhos sejamos conduzidos a esse destino.


quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Lendas de Manguezal - Parte VI - A cabana

Durante muito tempo, muitas das casas da pequena cidade de Manguezal eram feitas de madeira, mas aos poucos elas foram reconstruídas com tijolos e concreto. Muitos temem derrubar as árvores que ficam na mata perto dali. Poucas casas ainda são feitas de madeira, em especial as casas próximas ao mangue que são muito antigas e os familiares daquela região são muito pobres a ponto de não conseguirem reforma-las. Mas tem uma cabana, quase dentro da mata que envolve a cidade, que foi abandonada décadas atrás e continua lá, como um lembrete do que aconteceu em algum momento do século 19. A cabana hoje em dia tem uma coloração escura e assustadora. As suas paredes estão tomadas por musgo e um mofo de coloração muito escura e mal cheirosa, mas dizem que se você procurar bem, dá para perceber sangue espalhado pelas paredes. Ninguém quer morar naquela casa ou adquiri-la e creio que não tenha mais ninguém que poderia receber algum dinheiro por ela. A casa apenas está lá, sendo tomada pela destruição do tempo.

Existe um motivo para a casa estar abandonada. Não apenas ela é distante do restante da cidade e de difícil acesso, mas a família que ali morava foi acometida por muitas tragédias. Uma família composta por jovens pais e duas filhas gêmeas morava naquela casa. As meninas se chamavam Luara e Luana. Luara havia sido levada na noite de ano novo que passou no convento da cidade, na época cuidado por freiras. A segunda sobreviveu àquela noite para tempos depois testemunhar a morte dos pais acometidos por uma terrível cólera. Dizem que o pai ouviu o chamado do chalé escondido na mata que acoberta Manguezal e decidiu ignorar. Mas foi ele, e não Luana, que morrera daquela doença terrível, juntamente com a sua mãe. Talvez porque a mata tinha outros planos para ela.

Dizem que certa noite de lua cheia Luana, já uma jovem adulta, estava em casa quando ouviu um choro vindo da janela do seu quarto. Ela tinha acabado de perder os pais e vivia o trauma do desaparecimento da irmã, por isso se sentiu assombrada ao ouvir aquele choro tão familiar. Ao abrir a janela, viu a sua irmã, ainda com a aparência de criança, mas com olhos e cabelos brancos. Talvez ela estivesse ali para lamentar a morte dos pais. A menina entregou para a irmã um totem de madeira em forma de triângulo feito de gravetos da mata e disse que mais uma tragédia iria se abater em sua vida. E que aquele era o símbolo do que estava por vir.

No dia seguinte Luana encontrou um homem deitado em sua porta, completamente nu e muito ferido. Ela, com medo da situação, pegou a velha espingarda do pai e apontou para o rapaz. Ele acordou, ainda atordoado e muito fraco com as feridas que tinha pelo corpo e um machucado bem horrível na cabeça. Assim que a viu apontando a espingarda para ele, ele chorou copiosamente e pediu a sua ajuda, desmaiando novamente. A moça decidiu ajuda-lo.

O que se sabe dessa história é que a moça se apaixonou pelo forasteiro e tiveram sete filhos juntos. O homem de vez em quando sumia pela madrugada e retornava para o mesmo lugar que havia sido encontrado, sempre muito ferido e sem se lembrar do que havia acontecido. Sempre que ele sumia, histórias horríveis rondavam a região de uma criatura humanoide monstruosa coberta com a pele de onça pintada, com garras enormes afiadas e um rosto deformado, meio homem meio onça, e com dentes pontiagudos em uma boca assustadoramente grande, que atacava os desavisados que caminhavam pela cidade à noite, arrancando as suas entranhas e se alimentando delas. A mulher passou a viver desconfiada e com medo daquele homem que havia deixado fazer parte da sua vida, mas ele nunca a havia machucado. Ao nascer o sétimo filho do casal, o homem sumiu e nunca mais voltou. Deixou para trás, em cima do travesseiro dele, o mesmo símbolo que a irmã havia dado a ela no passado.

Em cidades do interior todos sabem sobre o que significa o sétimo filho. Aqui em Manguezal existem várias famílias com sete filhos, com histórias quase tão trágicas quanto as de Luana, mas dizem que tudo começou com ela. Quando o seu sétimo filho fez onze anos, alguns dos seus filhos já haviam tido destinos misteriosos. Luana teve dois filhos que desapareceram na noite de ano novo. O mais velho foi hipnotizado pelo canto do mar e teve um fim trágico. Apenas quatro dos seus filhos ainda moravam com ela e a mulher vivia a se lamentar pelas perdas que teve na vida, acometida por uma profunda depressão. Os moradores do local diziam que o homem por quem ela havia se apaixonado era na verdade uma criatura antiga que rondava a mata de Manguezal, um ser mutante meio homem e meio onça conhecido como Capiango, filho de uma das cinco bruxas que foram exiladas naquela mata e que dizem ter invocado uma divindade ainda mais antiga e poderosa, chamada Conorihi. A criatura antiga da mata havia conseguido se tornar brevemente humano e se disfarçou entre os moradores para amaldiçoa-los, começando com ela, a filha de um homem que ignorou o chamado das cinco.

Certa noite de lua cheia algo horripilante aconteceu com os filhos de Luana. Ela foi acordada com os gritos deles. Ao correr até o quarto onde ouvira o grito, o mesmo quarto onde antes dormiam ela e a irmã, avistou a silhueta de uma figura disforme e enorme, com pelo por todo o corpo parecendo o de uma onça pintada e uma boca que se assemelhava a um focinho com dentes enormes, além de garras extremamente afiadas saindo das pontas dos seus dedos. O seu primeiro instinto foi pegar a espingarda do pai e atirar na criatura. Mas ao olhar mais de perto, percebeu que o rosto daquela figura horripilante a lembrava o do seu filho mais novo. A mulher entrou em choque.

O monstro atacou uma das crianças e com as unhas afiadas começou a rasga-la e comer as suas entranhas. A mulher não hesitou mais e atirou naquele monstro. Mas a bala malmente parecia machucá-lo. Ele então partiu para cima da segunda criança e mais uma vez a rasgou e comeu as suas entranhas. O menino mais velho correu e pegou uma madeira que estava do lado de fora da casa. Começou a bater na criatura, que passou a soltar alguns grunhidos. Então o monstro partiu para cima do garoto e mordeu a sua cara, deixando o crânio exposto. O menino não morreu de imediato, ficou um tempo no chão se debatendo em agonia tentando puxar o ar que não parecia adentrar os seus pulmões. A mulher se lembrou dos totens deixados pela sua irmã e pelo seu marido, decidindo pegar um deles em se quarto e mostrar para aquela criatura, que imediatamente desmaiou e aos poucos voltou a ser a criança que a mulher tanto amava.

No dia seguinte um dos moradores decidiu investigar o que seriam os gritos que tanto ouviu naquela noite vindos da cabana próximo à mata, e viu uma criança toda coberta de sangue e machucados acordando. Próximo a ela estavam os corpos dilacerados dos seus irmãos. Sem entender o que havia acontecido, a criança começou a chorar desesperadamente e a gritar pela mãe. O menino e o homem foram até o quarto da mulher e perceberam que ela havia atirado em sua cabeça. Em uma de suas mãos estava uma carta relatando o que havia acontecido. Essa carta está em exibição no museu que fica dentro do farol da cidade. O homem pegou a carta da mão da mulher e começou a ler em voz alta. O menino, ao ouvir o que a mãe escrevera, ficou atordoado e correu para a mata, sem dar chances para que o homem pudesse processar o que acabara de ler. O homem viu a criança ser levada por uma menina de cabelos e olhos brancos. Ela o guiou até a mata e eles nunca mais foram vistos. Dizem que um dos rostos encravados nas árvores do local é o do menino. Outros dizem que ao adentrar muito fundo na mata, pode-se ver uma criatura mutante que se assemelha a uma onça, mas que se move como um homem, e que ataca os andarilhos, rasgando as suas barrigas e se alimentando das suas entranhas. Outras famílias tentaram morar naquele lugar, mas dizem ser visitadas pela figura fantasmagórica de Luara, que acreditam ainda visitar o local e chorar pelos seus familiares mortos.

Após o que aconteceu com Luana, todos as famílias perdem o sétimo filho de alguma forma em Manguezal, ao fazerem 11 anos de idade. Alguns somem ao entrar na mata, alguns se afogam no mar, alguns desaparecem na noite de ano novo e alguns são levados por Capiango para serem alimentados pelas árvores que ficam no miolo da mata de Manguezal. Algumas famílias relatam que os próprios sétimos filhos se transformam nessa figura mitológica e após virarem esse monstro metamorfo, se afugentam para a mata para nunca mais voltarem. 

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Lendas de Manguezal - Parte V - A Cachoeira

 As matas ao redor da pequena cidade de Manguezal são de uma beleza ímpar. A riqueza da sua fauna e flora é de tirar o fôlego. Mas os terrores que as cercam também podem te fazer ter uma experiência digna dos seus piores pesadelos. Sabe-se que as matas são acometidas por uma maldição que é tão antiga quanto à cidade. O convento da companhia de Jesus, agora abandonado, pode ter trazido algum desenvolvimento para essa região, mas as maldições que o convento sofreu se sobrepõem a qualquer coisa boa que esse lugar pode ter trazido para a cidade. Manguezal não é um bom lugar para se ter filhos, mas como a cidade é muito católica e planejamento familiar não faz parte da rotina de lá, algumas famílias chegam a ter mais de 10 filhos e é comum algumas dessas crianças terem algum fim misterioso ou arrepiante. Todas as famílias tem alguma história trágica.

Se você estiver no meio da mata que rodeia Manguezal, reze para não se deparar com um chalé aparentemente abandonado. A visão desse simplório lugar pode ser a última coisa que uma pessoa verá na vida e ainda assim não a mais assustadora que encontrará ali, pois segundo as lendas do local, o miolo da mata é de grande perigo e horror. Caso alguém saia vivo de lá, não será mais o mesmo. Na mata de Manguezal, não muito longe da cidade, há um rio que deságua no mar formando o mangue da região, chamado Pupti. Neste rio há uma cachoeira com uma gruta atrás da sua queda d'água. Alguns turistas desavisados que acamparam perto das suas margens e se aventuram pela gruta, que ainda não foi mapeada, relatam terem visto algo horrível no lugar. Há quem diga que ali existem vários estalactites e estalagmites, de uma beleza estonteante, e que quem for corajoso para ir mais adentro do local, pode encontrar pedras preciosas e muito ouro. É quase um achado de tirar o fôlego para os andarilhos que descobrem a região. Mas como tudo em Manguezal, há algo de estranho naquele local e muitos que se aventuram explorar o espaço, fogem de lá aterrorizados. Ao menos os que têm sorte de sobreviver.

Alguns moradores dizem já ter encontrado uma mulher de cabelos negros se banhando nua nas águas rio Pupti. Uma mulher de uma beleza sem tamanho, com olhos de um tom esverdeado como as águas do local, estonteantemente brilhantes. Não se sabe bem ao certo quem ela seja, mas sabe-se que, caso você a encontre, não deve se aproximar. De preferência, fuja dali rapidamente antes de ser notado. Nada de bom saíra desse encontro com a mulher misteriosa da cachoeira. Alguns dizem que ela mora na gruta atrás da queda d'água e que, em dias de lua nova, ruídos horríveis saem de lá. Alguns moradores dizem ter visto uma criatura monstruosa com parte do seu corpo gigantesco do lado de fora da gruta. Tentáculos amorfos no lugar do que deveriam ser braços, um rosto gigante e deformado, com dentes enormes e pontiagudos em uma boca molenga, que parece ter sido derretida, olhos de peixe imponentes e negros e dois grandes furos no meio da cara, no que parece ser o nariz da criatura. Há quem diga que a criatura monstruosa é a mulher que se metamorfoseia ao efeito da lua nova. Há quem diga que a mulher protege o nosso mundo desse monstro, conhecido como a divindade Conorihi, tido como um demônio para alguns. Acredita-se que a mulher é filha desse ser que reside na gruta. Há quem diga que a gruta é na verdade uma porta para o inferno e caso alguém seja levado para lá ou se adentre muito profundamente no local, chegará no mar de fogo infernal. Nem todos acreditam na existência da mulher da cachoeira, mas eu sim. E explicarei porquê.

Certa vez estava brincando na cachoeira com cinco dos meus amigos: Jaciara, Irani, Cauã, Joaquim e Santiago. Costumávamos ir até a cachoeira para nos desafiar a quem pulava do local mais alto e as vezes brincávamos de esconde-esconde. A história que contarei se passou quando eu deveria ter ainda uns dez anos de idade. Decidimos brincar de esconde-esconde no local, mesmo sabendo que seria noite de lua nova, mas adorávamos brincar ali e nada de ruim havia acontecido até aquele momento. Naquele dia, após nadarmos no rio por longas horas, decidimos brincar de esconde-esconde. A noite estava se aproximando lentamente, mas não queríamos ir embora. Santiago foi o escolhido para nos procurar e me escondi na mata, em um local que poderia ver onde ele estava. O que vi me atormenta até hoje. Jaciara decidiu se esconder atrás da cachoeira, dentro da gruta. Pude notar o seu rostinho olhando para Santiago, na expectativa que ele não a percebesse. Então vi que algo a puxou para dentro do local e não a vi mais. Ao invés disso, vi uma mulher de longos cabelos negros sair da gruta, completamente nua. A sua beleza era hipnotizante. Vi-la pular no rio graciosamente. O barulho chamou a atenção de Santiago, que logo percebeu a presença da mulher e ficou paralisado, se tremendo todo.

Todos nós sabíamos da história da mulher que morava naquela gruta, mesmo assim nos arriscávamos a ir na cachoeira pela beleza do local e pelo sossego que o rio Pupti passava. Nós seis também íamos para lá pela diversão e aventuras que sempre tínhamos. Frequentávamos o lugar desde os nossos oito anos de idade e aquela era a primeira vez que algo estranho acontecia. O menino encarava a mulher nadando a até a beira do rio sair das águas, indo em direção a ele. Pude ouvi-la dizer: 'O que faz aqui, pequenino? Estás perdido?'. Ele a encarou e sem dizer uma palavra balançou a cabeça negativamente. Ela continuou: 'Não sabes que não podes vir aqui, pequenino? Ainda mais nesta noite de lua nova. Mas não te preocupes. Estou muito feliz de te encontrar aqui.'. Ela então pegou a mão de Santiago e começou a acariciar o próprio rosto. De repente, ela mordeu a mão do menino, a arrancando violentamente. Ouvi o grito de dor que saiu da boca dele e nesse momento a mulher olhou diretamente para mim, pude ver os seus olhos verdes da cor do rio brilharem. Ouvi um dos meninos gritarem: 'Corre, galera!'. E pude ouvir as outras crianças saindo apressadamente dos seus esconderijos, correndo em direção à cidade. Fiz o mesmo.

Ao chegar em Manguezal, fui diretamente aos meus pais e contei o que tinha acabado de acontecer. O resto da história virou boato pela cidade. Aparentemente, alguns dos adultos foram até o local com espingardas e o que viram os deixaram perplexos. Primeiro eles notaram que a água próxima da cachoeira tinha uma enorme poça de sangue e ao chegarem mais perto, viram a cabeça de Santiago na entrada da gruta. O rosto do menino era de puro horror, mas estava sem os olhos e a sua língua havia sido arrancada. Não encontraram nenhum vestígio de Jaciara. Os moradores então interditaram a região e por muito tempo quem ia até o local encontrava partes de corpos que acredita-se ser das duas crianças que se atreveram a brincar naquele local. De tempos em tempos ouvimos o relato de transeuntes que chegam na cidade dizendo que algum companheiro de viagem foi levado por essa mulher para dentro da gruta. Ninguém se atreve a ir checar.

Irani ainda está na cidade, hoje casada e mãe de duas meninas gêmeas de três anos. Ela teme o que será das filhas dela. Ouvi dizer que está grávida de 5 meses. Cauã virou um pescador na região e, segundo o relato dos colegas pescadores, acabou pescando um peixe típico da região de cauda que representa mau agouro, desaparecendo logo em seguida. Todos sabem que aquele não é um peixe qualquer e que quem o pegar, não terá um bom destino. Joaquim era o sétimo filho de uma grande família com mais oito irmãos e irmãs. Dois dos seus irmãos já tinham desaparecido quando essa história da cachoeira aconteceu, mas quando Joaquim fez 11 anos, em uma noite de lua cheia, uma de suas irmãs foi morta violentamente por uma criatura meio homem e meio onça e o menino fugiu para as matas para nunca mais ser visto. Dizem que ele era a própria criatura e agora vaga pelas matas como essa mutação monstruosa. Talvez as próprias árvores tenham dado um fim a ele.

Eu, Moacir, aprendi com aquela história a nunca ignorar as lendas que rodeiam a pequena cidade de Manguezal, pois elas sempre se provam reais. Não me neguei a ir ao convento quando completei 11 anos, na noite de ano novo. Sempre ofereço, com a minha família, um animal para o mangue. Assim que os meus estudos na UFMA terminarem, retornarei para a cidade e darei aula na pequena escola da região para as crianças dali, e quem sabe compartilhar com elas as histórias sobre o local onde elas nasceram e moram. Jamais me arriscarei a andar pelas matas que cercam a cidade e nunca me atreverei a derrubar uma árvore dali, em especial as que tiverem rostos cravados em seus caules. Não pretendo pescar no mar de Manguezal e nem ambiciono pegar o peixe de cauda longa. Mas se um dia ouvir o chamado das cinco bruxas, irei correndo até a chalé escondida naquelas matas. E um dia sei que me casarei com alguma mulher da região e teremos muitos filhos, mas que nem todos sobreviverão. Eu reconheço que até o momento dei sorte, até porque poderia ter sido eu a morrer naquele dia. Por isso passei a respeitar as histórias aterrorizantes que já ouvi sobre Manguezal e que li no museu do farol. A minha cidade com histórias tão trágicas e medonhas, mas onde eu nasci, cresci e é onde um dia morrerei.