sábado, 6 de junho de 2020

O ônibus das 22h


O ônibus quebrou no meio do caminho. Era 22h20. O ônibus estava lotado. Várias pessoas saindo do expediente na mesma hora. Era uma noite quente, estava abafado. Maria pegava sempre aquele mesmo ônibus, exceto raras vezes que saiu mais tarde da loja de calçados do shopping central. O motorista era o seu Joaquim, o cobrador era Lucas. Eram muito gente fina, já pararam fora do ponto que ela desce normalmente várias vezes, por ser mais perto da casa dela.

'E aí, seu Joaquim, o que aconteceu?' alguém gritou do fundo do ônibus. 'ô galera, negócio é o seguinte, lata velha… o motor super aqueceu. Ô Lucas, vê se consegue alguma água aí nas redondezas, que a da garrafa acabou já… já avisei para esse povo que tá vazando água e não fazem nada…'.

O cobrador desceu do ônibus e foi procurar algum lugar onde poderia conseguir água. Eis o problema, aquele lugar era meio deserto. Seria difícil encontrar água, mas não impossível. Iria demorar, mas Maria estava 20 minutos longe de casa de ônibus, imagina andando. E ela estava cansada estava escuro, ali era perigoso. Melhor esperar. Algumas pessoas desceram do ônibus, liberando acentos para os que estavam em pé poderem descansar enquanto esperam. O próximo ônibus demoraria ainda meia-hora, se passasse. E para algumas pessoas, a caminhada não seria tão longa. Capaz até de algum dos que desceram e morar nas aproximações e ajudar o Lucas. Tinha tudo para dar certo, apesar da demora. Mas não iria dar.

Após uns 10 minutos, uma mulher subiu correndo no ônibus gritando: 'Fecha, fecha, fecha, fecha! Fecha a porra da porta!'. Joaquim não entendeu nada, mas fechou a porta. Não demorou muito para as pessoas perceberem que a mulher estava ferida, os braços estavam com manchas roxas, a cara muito machucada e a roupa rasgada. Estaria fugindo de algum homem que a tinha machucado? Foi assaltada? Não demorou muito e começou a dizer: 'Eles estão vindo! Meu Deus, eles estão a caminho!'. 'O que é, moça… fala logo! É alguma gangue? É a polícia? Que desgraça que tá acontecendo?'. Outro passageiro falou: 'Ô filho da puta da desgraça, tá vendo que a mulher tá machucada e traumatizada não, seu escroto do caralho. Ô moça, senta aqui. Respira fundo. Quer um pouco de água? Ô galera, alguém tem água aí?'. Maria tinha meia garrafa que tinha enchido no trabalho e que não conseguiu terminar na correria. 'eu tenho aqui!' ela disse. 'Toma moça, beba um pouco água, respira. Senta aqui nesse lugar que o moço cedeu. Pronto. Alguém liga para a polícia?'. 'ô véi, peraí… a gente nem sabe o que aconteceu ainda, já quer ligar pros omi…' O passageiro que havia falado primeiro comentou. A mulher então disse: 'Não, não é a polícia. Mas eles não virão, nessa área eles não vem não. Não… quem vem aí são os mortos.' 'vixe, tá doida!', o homem falou. Outro passageiro falou. 'eu vou é me picar daqui que só me falta mais essa.' 'ô moço, não vá não.' ela disse 'Escuta o que eu te disse… tava rolando uma festa adentrando mais o mato, eu tava lá comendo a minha água e dançando… daí apareceu um cara todo estranho, com a cara inchada e cheia de veias pretas no rosto e nos braços tudo, todo perebento. O cara começou a se aproximar e a galera lá pegou e atiraou no cara todo… mas nada parava o homem não. Ele foi para cima de uma menina e mordeu o pescoço dela. Te juro. E ela começou a se tremer toda e espumar e caiu no chão. Horrível! Daí um cabra lá atirou na cabeça do homem todo estropiado e ele caiu e não se mexeu mais. Mas do nada a menina se levanta toda perebenta também, com a cara com as veias tudo preta, e ataca outra pessoa, que se levanta também uns segundos depois e os dois começaram a atacar a galera… foi uma carnificina! A galera começou a encher os dois de porrada, gente ligando para a polícia, o povo caia e se levantava com a cara bizarra! Eu saí azoada de lá, esqueci minha bolsa, meu celular… ô véi, a galera começou a andar tudo estranho… eu apanhei e as porra no processo, ninguém sabia quem tinha sido mordido ou não.' 'eita, desgraça. Tá parecendo negócio de filme de morto vivo essa porra' o mesmo homem falou. 'oxe, eu vou partir a mil que quem fica é o coelho nessa porra!', comentou o homem que já tinha falado em sair. Maria olhou para ela e perguntou para ela, enquanto o cara descia do ônibus: 'Você tem certeza disso? Será que não era briga de gangue? Ou algum drogado?'. A mulher então disse 'ô moça, nera não… tô te falando, a galera morreu lá mesmo e depois se levantou. Eles tavam muito machucados, tinha até gente com as tripa pendurada. Deus que me livre, mas eu juro.'

Uma das senhoras que estava no ônibus se ajoelhou e começou a gritar: 'é a fúria divina! Deus está nos castigando por não seguirmos a palavra dela! Ô Deus, tenha piedade! É o juízo final! Satanás voltou e está comandando o exército dele! Se arrependam antes que seja tarde…' 'Ô miséra!' o rapaz a interrompeu 'Nada contra Deus e as porra, mas se esse bando de lá ele tiver vindo aqui, a gente tem que revidar. Os cara tavam tudo armado lá. Como é que faz?'. Um dos passageiros, um homem com cara de brabo, mas muito magro, tirou uma arma e disse: 'A gente atira é pra matar essas porra! O cara morreu como? Com um Tiro na cabeça. Que nem nos filmes. É na cabeça que a gente mira.' ' E é com uma arma só? É bala eterna essa porra era aí?' o outro passageiro falou 'E tu tava querendo o que com essa arma aqui no busão? Roubar a gente?'. 'Não véi, é proteção, tá ligado?' o cara da arma respondeu. 'A parada tá cheia de bala. Certeza que não sou o único. Mais alguém aí com alguma arma, galera?'. Seu Joaquim foi o primeiro a falar: 'Tenho aqui uma que carrego comigo pra quando os Zé Mané vem assaltar. Tô ligado no senhor, viu? Fizer qualquer movimento errado aí, atiro é na sua cabeça. Aqui tem treinamento, painho.'. 'Ô véi, fica de boa aí que já disse que é pra proteção.', o homem falou.

Maria percebeu que muita gente estava assustada, uma mãe e uma filha choravam abraçadas. A menina aparentava ter não mais do que 10 anos. Mas alguns passageiros começaram a mostrar as armas: canivetes, revólver, taser, agulha de tricô e um homem tirou até um facão de dentro de um isopor. 'é pra.

cortar coco. Tá afiado que só. Corta uma cabeça com dois movimentos.' O cara do facão disse.

Então estavam todos na expectativa. A crente começou a rezar, o cara do revólver, junto com o restante das pessoas que também tinham revólver (cerca de mais três) ficaram nas janelas. Ele organizou as pessoas com as armas brancas na porta da frente, caso algum desses monstros tentasse entrar. O cara do facão ficou na outra porta. Maria e o resto ficaram abaixados, esperando. Seu Joaquim estava posicionado na janela do motorista. Nada de aparecer alguém. 'Ô véi, tô falando que a mulher tá doida. Tem nada não nessa porra…'. O homem que sempre falava algo disse. 'Espera!' disse o seu Joaquim ' estou vendo alguém. Tá vindo pela frente do ônibus. Ah… é só o Lucas. Vou abrir aqui a porta…'. 

A pessoa que entrou no ônibus era Lucas, o cobrador. Mas ele já não parecia mais o mesmo. O seu olho esquerdo estava pendurado, como se alguém tivesse tentado puxar, a sua perna direita estava quebrada, tinham mordidas por todo o seu braço e manchas roxas em todo o seu rosto, uma de suas mãos havia se soltado do braço, mas continuava semi-pendurada. Na outra, ironicamente, ele carregava a garrafa com água. Por todo o seu corpo podia-se perceber veias negras e apele dele estava com uma coloração muito pálida. O olho que ainda estava no lugar, agora tinha uma coloração branca. Ao perceber que o colega de trabalho com quem seu Joaquim havia trabalhado por tantos anos tinha virado aquela criatura macabra, ele apontou para a sua cabeça e atirou. Fechou a porta imediatamente. Então gritou: 'que desgraça era essa? Porra, Lucas! Você não merecia isso não, véi? Porra!'. Então começou a chorar.

'Eita, que é isso, meu irmão? O que foi essa porra que entrou aí? Ô vei, liga para a polícia aí! Passou da hora já. Esses viado têm de vir, não é possível isso não!'. O passageiro falante falou, deseperado. Nesse momento várias pessoas começaram a ligar, mas a linha só dava ocupada.

A mulher então começou a gritar, com a voz trêmula: 'ô véi, tô falando que a polícia num vem pra essa área não, porra! Tu acha que a gente não tentou ligar lá na hora não? Os cara riram da nossa cara e desligavam o telefone. Não adianta não. Porra, pivete… tô com medo de morrer, véi. Eles deve tá chegano, porra! Cala a boca aí e fica de olho na rua, mizerênto do inferno. E cala a boca pra não chamar mais atenção!'. ‘Tu acha que tu falando com o que, sinhá desgraça! Cala a boca você sua puta! Tô ligado no que vocês fazem nessas mata! Você que trouxe essa porra pra cá! Fica quieta senão eu te encho de porrada e te coloco para fora desse busão!’.

‘Cala a boca, porra!’ Seu Joaquim gritou. ‘Ninguém vai expulsar ninguém daqui não e se você encostar a mão nessa mulher, tu vai receber um tiro no meio dessa fuça que não para de falar, homem tagarela da desgraça! Olha só, o Lucas, que Deus o tenha, trouxe a água. Vou ter que descer e abastecer o radiador. Quero saber se alguém com arma se voluntaria para ir comigo, senão vamos ficar parados aqui esperando o pior.’. ‘Eu vou!’ disse o cara brabo com a arma. ‘Tô doido pra encher o cu de um desses de bala!’. Então vamos, fica de olho e qualquer movimento estranho, você já atira’, disse o seu Joaquim. ‘Oxe, nem precisa falar nada não.’ O homem respondeu. ‘Ô tagarela.’ Joaquim chamou. ‘Venha aqui pra frente, fica aqui no volante. Deixa eu te falar, essa vávula aqui, tu vai usar ela parar abrir e fechar o ônibus, caso algo dê errado. Você entendeu?’ ‘Entendi sim senhor. E meu nome é Daniel, tá ligado?’ O homem disse. ‘Tô ligado, tagarela. Senta logo aqui pra não atrasar o nosso lado.’

Os dois homens desceram do ônibus. Daniel ficou no volante e de vez em quando falava algo, sabendo que os homens do lado de fora não ouviriam nada. ‘Tagarela é a senhora sua mãe, seu filho da puta!’. ‘Fica querendo me dizer o que fazer. Vai ver só, quando encher essa porra, vou é me picar daqui com esse ônibus. Passo em cima e as porra!’. De repente, ouviu-se tiros. Vários. Depois gritos. O homem do revólver começou a bater na porta e gritava: ‘Abra essa desgraça aí! Tá cheio de morto-vivo aqui! Abra logo essa porra!’. Daniel ficou paralisado por alguns segundos e em seguida abriu a porta. O homem começou a subir com duas armas na mão, a dele e ado seu Joaquim, mas foi derrubado por um homem que estava do lado de fora. Daniel percebeu que era o motorista, agora com uma aparência bisonha. ‘Pega a arma aí, porra! Atira!’ O homem gritava. Daniel pegou a arma e atirou, acertando o motorista na barriga, que continuou como se não tivesse levado nenhum tiro. Ele respirou fundo e mirou na cabeça do motorista. Já era tarde, o homem brabo foi mordido na perna.

Ele entrou rapidamente no ônibus e Daniel fechou a porta. Os mortos haviam cercado o ônibus e as pessoas começaram a se agitar e a gritar. Quem estava com revólver começou a atirar. Maria gritou: ‘Peraí, povo. Não fica atirando assim não. Guenta aí que a gente tá com uma situação.’. O homem brabo começou a murmurar: ‘O filho da puta me mordeu! Tô quase sem bala! O filho da puta encheu a parada com água.’ E então, começou a convulsionar e apagou. A crente se ajoelhou e disse: ‘Ô pai, tenha piedade de nós! Eu sou a sua serva! Me cubra com o seu manto sagrado, me proteja desses demônios!’.

Não demorou muito e o homem se levantou e foi para cima da mulher que segurava a sua filha, que gritou desesperada. Ele mordeu a bochecha da mulher. Alguém conseguiu atirar na cabeça do homem e ele caiu em cima da mulher, cobrindo a criança, que começou a gritar: ‘Mainha! Mainha!’. Maria se aproximou da cena, tentando tirar o homem de cima da mulher e da criança, com a ajuda de outros passageiros. Eles então tentaram puxar a criança, mas ela se recusava a largar a mãe. Não levou muito tempo e a mulher abriu os olhos, a cara estava toda tomada por veias e a ferida começou a expelir um líquido rosado e fétido. Ela olhou para a criança, que a abraçava, e a mordeu no ombro. A menina soltou um grito aterrorizante e começou a chorar mais alto, percebia-se pelo choro o quanto a mordida havia doído.

O homem com o facão conseguiu se aproximar da mulher, a agarrou pelos cabelos e com dois movimentos, arrancou-lhe a cabeça. A criança desmaiou. Daniel gritou do assento do motorista: ‘Que porra foi essa áí?’ E tentou ligar o ônibus, mas em seguida, ouviu-se outro grito. O ônibus não parecia querer ligar. Quando Daniel se virou, viu que a garotinha havia se levantado e foi em direção a mulher que havia entrado no ônibus. Ela agarrou a mulher pelo lábio inferior e o arrancou em uma mordida. A garota estava com uma aparência mórbida. O ombro onde havia sido mordida estava inchado e o mesmo liquido rosado que saiu da bochecha da mãe, saía dela. O corpo estava todo tomado por veias negras e o seu rosto estava tomado por sangue. A menina olhou para o homem que estava com a arma apontada para ele e ainda mastigando o lábio da moça, pulou nele e mordeu o antebraço. O cara conseguiu atirar nela.

Enquanto toda essa ação acontecia, a mulher que teve o seu lábio arrancado, se levantou e mordeu a cabeça da crente, que estava ainda ajoelhada no chão, rezando. Ela abriu um enorme buraco na cabeça da mulher e imediatamente apagou. Em seguida, o homem que segurava a arma começou a convulsionar. Maria pensou rápido e pegou a arma da mão dele. Ela gritou rapidamente. ‘Se preparem, é pra atacar a cabeça deles!’, e atirou na mulher sem o lábio. Mas o que seguiu foi uma carnificina. As pessoas que estavam armadas com canivetes e taser até tentaram atacar, mas foram atacadas logo, algumas pessoas começaram a se arrastar pelo chão, mas rapidamente eram atacadas. O homem do facão conseguiu arrancar umas três cabeças e sempre que arrancava uma, gritava ‘Toma, filadaputa!’. Maria e mais duas pessoas que estavam com arma conseguiram atirar na maioria dos passageiros que se levantavam. A munição dela acabou logo, mas Daniel decidiu se juntar a briga e usando a arma do motorista, atirou em alguns dos mortos-vivos. Sobraram três: Ela, Daniel e o homem do facão. Mas ao olhar para a mão dele, Maria percebeu que o homem tinha sido mordido. Ele largou o facão. Maria, que já não tinha mais balas, olhou para Daniel. Ele apontou a arma para o homem, que ao perceber o que estava prestes a acontecer, falou: ‘Não atira não. Eu tô vivo ainda!’. O revólver estava sem balas. Maria se lembrou que o homem brabo disse que estava quase sem balas. Quase. Ela rapidamente pegou a arma que estava ao lado do seu corpo e atirou no homem. Ela sabia que se não fizesse isso logo, ele iria se transformar em uma daquelas criaturas e poderia ataca-la. O homem morreu com um tiro na cabeça.

‘E agora, Daniel?’. Ela perguntou? ‘E agora a gente se pica daqui. Vou tentar ligar o ônibus de novo, porque os bichos lá de fora estão quase arrombando as portas!’. Ele então tentou ligar o ônibus que após algumas tentativas, pegou. ‘Você sabe dirigir isso?’. Maria perguntou. ‘Saber eu não sei não.’ Ele disse. ‘Mas se não for nas coxa, aqui a gente já pode fazer o túmulo.’. Ele começou a dirigir, perdendo mais o controle do que andando, mas se afastou rapidamente do lugar e seguiu adiante. Já era mais de 01 da manhã e não tinha passado o outro ônibus.



Priscila de Athaides

terça-feira, 2 de junho de 2020

Conto - O relógio

     
Ela acordou e percebeu que tinha algo estranho. Ainda estava em seu quarto, mas ele estava diferente. Os seus lençóis já não exalavam ao cheiro fresco do amaciante que ela adorava. Agora cheiravam a mofo. Ela olhou para eles e estavam encardidos. Ela podia jurar que tinha trocado tudo no dia anterior e jamais deixaria os seus lençóis ficarem sujos daquele jeito. O seu travesseiro parecia desgastado, não estavam macios e confortáveis como antes. Ela então olhou o seu quarto. As paredes estavam mofadas como se tivessem passado por anos de infiltração, a sua estante de livros estava estourada, os livros no chão, todos sujos, rasgados. O seu computador estava todo enferrujado, assim como o seu abajur. O seu celular ainda estava no mesmo lugar, empoeirado, desgastado, sem bateria. Ela tentou carrega-lo, mas percebeu que não tinha energia. O chão estava imundo, como se não tivesse sido varrido há anos. Ao colocar os pés no chão, sentiu ele grudento. Mas o mais estranho, o que ela ainda não havia notado até então era como a luz do sol estava estranha, fraca, diferente do que costumava ser. A sua cabeça girava: O que estava acontecendo?

Um barulho de passos veio do corredor. Ela procurou a primeira coisa que viu na sua frente para se proteger. O abajur enferrujado ao lado da sua cama. Esperou ouvir a porta abrir e viu um homem adentrar o seu quarto. Ela bateu com o abajur em sua cabeça e o viu desmaiar. O que poderia fazer agora? Deveria fugir? Ela olhou pela janela e o mundo parecia tomado por plantas. Não reconhecia aquele lugar. Mas percebeu os movimentos lá fora e os olhos que pareciam te encarar. Ela não podia sair, não sabia o que a esperava lá. Então, pegou algumas peças de roupa e amarrou aquele homem desacordado à sua cama e aguardou. Precisava de respostas.

Ele despertou. Sentia uma dor horrível de cabeça. Olhou para cima e a viu segurando um abajur. Ela imediatamente gritou: ‘Quem é você, o que está acontecendo?’. Ele olhou para ela e imediatamente começou a dizer: ‘Não, não, não, não, não... Deu tudo errado. Não! O que você está fazendo aqui? NÃO! Você precisa voltar!’. Ele pode ver a confusão na cara dela. Claro, nada fazia sentido. Ela era de outro momento. Mas não era para estar ali. Não era para ele estar ali ainda. Ela precisava voltar. ‘Me responda! Quem é você? O que está acontecendo?’. Ele começou a chorar. Então disse: ‘Eu tentei te trazer de volta para antes de você conhece-lo, mas te trouxe para agora. Não era para você estar aqui agora, não assim.’

Ela não conseguia entender nada. Estava confusa. Olhava para aquele rosto e ele tinha algo de familiar, deveria ter em torno de 30 e poucos anos. Ela sentia uma conexão estranha com ele. Mas estava tudo fora de lugar naquele cenário tão familiar. Como se ali não fosse o tempo dela. Ele começou a dizer: ‘Olha, o mundo está morrendo. Houve um grande desastre que destruiu o nosso meio ambiente. A terra está esfriando. Poucos sobreviveram. Não tem mais comida para todos. Olhe lá fora. Você consegue vê-los. Eles são como nós, mas tornaram-se algo selvagem. Estão famintos e como estamos agora é um banquete para eles. Eu sei disso, eu estou lá agora.’. Nada fazia sentido. Como que o mundo está morrendo? Ela esteve dormindo enquanto o mundo se acabava? Ela se lembra que havia saído ontem com os seus amigos. Beberam um pouco, se divertiram. Ela conheceu alguém novo, mas voltou para a casa. Olhando para o homem amarrado em sua casa, tinha algo de familiar, que lembrava o homem que ela conheceu. Agora ela se lembra, tinha alguém na sua porta ontem. Era ele. O que ele disse mesmo? ‘Você precisa saber.’ Ela então disse: ‘O que eu preciso saber?’

Agora ele conseguiu entender um pouco. Ela não se lembrava de nada de ontem. Ele então decidiu responder: ‘Laura, eu sei que tudo isso parece insano. Ontem nós conversamos e você não conseguiu processar bem o que te disse. Talvez a sua mente não tenha conseguido processar as informações. 30 anos atrás você conheceu um homem, Pedro. Vocês estiveram juntos por alguns meses, mas veio a guerra e ele teve de partir. Ele nunca mais voltou e você imaginou que ele estava morto. O que tornou as coisas mais difíceis é que você estava grávida. E esse bebê era eu.’.

Não, impossível. Aquilo não fazia sentido. Ela não viveu nada daquilo. Isso não aconteceu. Ela começou a gritar: ‘Mentira! Isso nunca aconteceu!’ Ele disse, quase que ao mesmo tempo: ‘Isso não aconteceu, ainda. Entenda, eu vim tentar te alertar. Ele não morreu, ele virou prisioneiro de guerra e eles fizeram algo com o Pedro. Você precisa se preparar! Ele virá até você e me levará com ele. Eles farão experimentos em mim. O que eles estão criando vai desencadear essa catástrofe. As crianças que estavam lá comigo, haviam mais de mil, elas serão tornadas em algo selvagem, feitos para se adaptarem a esse novo mundo. Quanto mais tempo você está aqui, mais você sofrerá com a radiação. Pedro fez isso comigo, o meu pai... Porém os cientistas... eles aparecerem e conseguiram reverter o procedimento. Eles me enviaram para te avisar. Não sei o que aconteceu. Devo ter te trazido comigo. Esse mesmo momento é errado para mim. Eu me lembro... Eu me lembro daqui. É aqui que eu morro. Precisamos voltar!’

Aquilo soava tão insano. Ela queria fugir, mas temia o que a esperava lá fora. As palavras dele eram tão estranhas, mas tão familiar. Ela se lembrava. O homem na porta. Ele parecia tão desesperado e ela queria apenas que ele fosse embora. Ela entrou e ele invadiu a sua casa. Ela se lembra de ter pegado a faca da cozinha, porém ele a desarmou e disse que não queria machucá-la. Ele a amarrou no sofá com as mãos para a frente, de forma que ela conseguia se mexer um pouco. E disse tudo aquilo. O que mais? Sim, ele disse para ela não se envolver com Pedro. Pedro... o homem que ela tinha acabado de conhecer. Eles tinham trocado os números, mas nem chegaram a trocar mensagens. Naquele momento ela tinha sentido o celular vibrar. ‘É ele.’ Disse o homem. ‘É aqui que tudo começa. Você precisa saber!’ Ela conseguiu pegar o celular, que estava no bolso da frente, e viu que já passara da meia-noite. Mas de repente veio um clarão e ela acordou naquela cama. Ela olhou para ele, tentando racionalizar a situação, e perguntou: ‘Como faço então para voltar para o meu tempo original?’.

Ele olhou para ela, apavorado. Era claro que ele não sabia. Mas ele sabia que algo iria acontecer naquela sala: um clarão. O que o cientista havia dito mesmo? ‘Na gaveta azul, você encontrará a chave. Salve a mulher. Você sabe o que acontecerá. Mas você pode ao menos salvá-la.’. Ele olhou ao redor do quarto. Ali estava uma cômoda desgastada. Percebeu que as gavetas já não tinham mais nenhuma cor. Ele apontou para o cômodo e perguntou: ‘As gavetas. Quais eram as cores originais?’, ele perguntou. ‘Cada uma tinha uma cor.’, ela respondeu. ‘Ótimo, qual era a azul?’, ele quis saber. ‘Azul?’, ela pensou. Não tinha nenhuma azul. Ela não entendeu. Mas se lembrou que o buffet da sala era de cor turquesa e tinha uma única gaveta. Então ela disse: ‘Na sala!’.

Ao ouvir aquelas palavras, ele ficou pálido. Não na sala. Ele se lembrava. Na sala era quando iria acontecer. Ele poderia evitar? Ele então pediu que ela fosse sorrateiramente até a sala, mas que se preparasse, tinha algo que poderia tirá-la dali, dentro da gaveta azul. Os selvagens iriam invadir ao perceber qualquer movimento naquele cômodo. Ela então o desamarrou e se prepararam para o que iriam ter de enfrentar.

Saíram do quarto. Ela então entendeu porque eles não poderiam alcança-la. O corredor estava obstruído. Ela entendeu que não era a primeira a ficar ali. Tinha algum mecanismo que brilhava. ‘São mecanismos de proteção.’ Ele explicou. ‘Os cientistas haviam preparado esse lugar para este momento. Eles sabiam que poderia dar errado, porque eu já havia contado a eles. A janela do quarto também estava protegida. Eles sabiam, por isso não avançaram. Mas na sala, estamos expostos.’. ‘Ok, mas como passamos?’ Ela nem conseguia acreditar no que estava acontecendo. ‘Tem uma senha. Mas eles nunca me disseram. Só uma dica. “Em um dia de sol, no lago oeste, eu vi alguém que me chamava. Estava sentada em uma pedra. Era uma miragem. Mas sabia bem quem era ela.”’ ‘A sereia!’ Ela respondeu. ‘Era um conto que a minha mãe costumava ler para mim quando eu era criança. Qual era o nome dela? Sim! Iara!’. Então ela olhou a parede e pode ver a saliência. Ela tocou e uma tela se acendeu. Ela pode digitar a senha. O mecanismo de defesa se desligou.

Não tinham muito o que fazer. Tinham que correr até o buffet da sala. Ele ainda estava lá, mas a gaveta havia sumido. E agora? Então ela se lembrou que havia um compartimento secreto onde ela deixava algum dinheiro guardado. Ela tateou e ainda estava lá. Quando abriu, viu um estranho relógio digital. ‘Coloque a data e a hora de quando você me viu pela primeira vez! AGORA!’. Ele gritou. Viu a porta se escancarar. Mal podia acreditar no que vira. Era o mesmo homem que estava ao seu lado, mas vestindo farrapos, seus cabelos e barba estavam grandes e imundos. A sua aparência era horrível, estava extremamente magro. Mas era ele! Eles se olharam, com enorme espanto. Ela digitou a data e a hora e então veio novamente o clarão. Estava de volta, sentada no sofá. Mas ele já não estava mais lá. Ele não conseguiu retornar. Ela precisava salvá-lo! O seu filho! Mas aquilo não fazia sentido. Então o seu celular vibrou. Era o Pedro. Será que ela conseguiria reverter aquele terrível futuro. Ela então respondeu:

‘Olá Pedro. Gostei muito de te conhecer hoje. Olha só, queria muito te ver. Você pode vir aqui?’

‘Agora?’. Ele perguntou.

‘Sim. Por favor. Você precisa saber...’

Priscila de Athaides – 02/06/2020

Conto - O som do trovão

Dormia profundamente em meu quarto. Chovia e o vento soprava em minha janela como sussurros. De tempos em tempos ouvia os ecos que os trovões faziam, à distância, muito de longe, adentrando os meus sonhos.
Um desses trovões chegou muito perto, parecia ter caído próximo a minha janela. E com ele ouvi as palavras: quem é você? Abri os olhos rapidamente. Talvez fosse apenas uma impressão de algum sonho permanecendo em meus ouvidos. Olhei ao redor do meu quarto e apenas via as sombras dos objetos. Então veio mais um raio, iluminando o meu quarto e vi uma silhueta que tinha olhos brilhantes oscilando entre verde e vermelho, como os olhos de um gato. Assim que veio o som do trovão, ouvi de novo, mais perto: quem é você? E a imagem sumiu. 
Me levantei, liguei a luz e tentei racionalizar o que havia acontecido. Estaria eu sonhando acordado? Seria algum estado entre os sonhos e o despertar? Havia algo ali de fato? Não tive coragem de apagar as luzes e decidi ouvir um pouco de música com os meus fones de ouvido, encarando o teto. A chuva continuava forte e de vez em quando um trovão ecoava, mas não via ou ouvia nada de anormal. Era algo da minha cabeça, claro. Mas o medo paralisante e irracional me impedia de tornar a apagar a luz. 
E então, escuridão. Faltou energia. Fechei os olhos e procurei apagar o que acontecera da minha mente e voltar a dormir. Depois de alguns minutos o sono chegou e me vi caminhando nas ruas desertas, com as luzes apagadas. Olhei para o meu apartamento e vi a única luz acesa e aquela mesma figura me encarando da minha janela, com os seus olhos brilhantes. 
Trovejou. Então ouvi novamente algo que me fez despertar: saia daqui! Abri os olhos e não vi mais nada. A luz também não tinha voltado ainda. E me senti aterrorizado. Fechei os olhos e procurei respirar profundamente, tentei entrar em um estado de transe. Temia os trovões e o que poderia aparecer. 
Notei algo nas minhas costas, começou bem de leve e logo se transformou em uma respiração pesada em meu pescoço, seguido de sussurros, como alguém tentando respirar e não conseguindo, sufocando. Me virei e ao meu lado aquela figura estava deitada me olhando fixamente, com os seus olhos brilhantes, desesperados. E desapareceu. 
Senti então uma mão gélida agarrando um dos meus pés. Não quis olhar. O que estava acontecendo? Essa mão me puxou da minha cama e falava: saia da minha cama! E então parou. Eu decidi sair do meu apartamento e desci as escadas do meu prédio correndo, desesperado, procurando fugir daquela aparição. 
Vi aquela figura parada em meio as escadas. Ouvi um choro e um grito aterrorizante! Fiquei paralisado, encarando aquela figura bizarra com a boca aberta gritando e os seus olhos sendo a única coisa iluminando aquele espaço. Seus olhos me aterrorizavam! O que fazer? Voltei alguns lances e bati na casa de um conhecido. Tentei inventar uma desculpa qualquer: perdi as chaves de casa. Ele então preparou o sofá para eu dormir. Já não estava mais sozinho. Estava tudo bem.
Estava tão exausto que dormi logo em seguida. Queria apenas que o dia raiasse. Ouvi novamente o trovão. Congelei a espinha. Tinha algo ali. Aquela figura estava ao lado do sofá, me olhando. A boca escancarada, gritando: quem é você? Ele então tocou o meu rosto e desapareceu. Agora encaro o teto e não consigo mais me mexer. Estou paralisado. Escuto tudo, sinto tudo, mas não me mexo mais. Olho ao meu redor até onde consigo e no canto da sala aquela figura me encara, aterrorizada. Troveja e o dia não raiou.

Priscila de Athaides - 01.06.2020