quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Bianca

Hoje é uma daquelas noites frias, uma névoa gélida toma conta da cidade, o céu está coberto de nuvens, e ainda assim pode-se ver a luz da lua atravessando algumas nuvens. É uma daquelas noites que o sono demora a vir. Isso têm sido algo que se repete com bastante freqüência ultimamente, acredito ser por causa do casamento que está próximo. Hoje é 12 de maio e faltam apenas três dias para casar-me com o Conde Ricardo de Orlando.

Tenho por agora 17 anos, completei-os recentemente, no final do mês de abril. Estou noiva já há três anos. Não posso afirmar que amo-o, mas afeiçoei-me a ele. O Conde nos ajudou muito quando precisamos.

Minha mãe, D. Matilda Gonçalves, ficou viúva muito nova, eu tinha apenas dois anos na época. Meu pai era contador do governo e sofria de gota. O trabalho tomava-lhe muito o tempo, não gostava de deixar as coisas acumulando-se, dizia a minha mãe, então desleixou-se de sua saúde até que a doença o tomou de tal forma que fora irreversível. Minha mãe herdou a casa e a então escrava Dita.

A casa é relativamente grande, com 2 andares, muito maior do que necessitamos, é verdade, mas é bastante confortável. Constitui de um hall, duas salas, uma de visitas e outra de jantar, uma cozinha, cinco quartos, sendo que três ficam no andar de cima, um deles é o meu e a suíte é da minha mãe, o terceiro usamos como sala de costura, e dois quartos ficam no andar de baixo, um deles ocupado pelas empregadas e o outro usamos de depósito de comida e outras coisas, e três banheiros, dois no andar de baixo e um que é a suíte, um dos banheiros é pros serviçais e o outro é o social, costumava usar o da minha mãe, mas agora utilizo o de baixo, Cristal me ajuda a levar as minhas coisas até o banheiro e depois trazê-las de volta para o meu quarto.

Minha mãe dizia ser herança do meu avô paterno, tinha muita afeição por ele. Disse-me que meu avô chegou a morar com eles no começo do seu casamento, mas que morreu em menos de 1 ano, isso afastou o meu pai dela, que mergulhava mais e mais no trabalho.

A casa antes era realmente bela, tínhamos rendas espalhadas pelos balcões e mesas da casa, quadros lindos no hall, algumas esculturas, os móveis eram novos e estavam sempre bem limpos e os lençóis tínhamos aos montes, de todas as cores, de vários tecidos. Como meu pai não deixou grandes quantias de dinheiro para mamãe, e como a pensão do governo era apenas o suficiente para pagarmos algumas contas e alimentarmo-nos bem, minha mãe começou a costurar para os vizinhos, arte que aprendi muito cedo para ajudá-la no serviço. Ganhavamos pouco, mas adicionado à pensão, dava para vivermos com conforto.

Com o passar do tempo e com a solidão, mamãe entregou-se a bebida. A princípio não me importava tanto, porém a bebida começou a ficar constante, passou a beber quase todas as noites, passei a costurar por nós duas, pois ela começou a acordar tarde e de ressaca. Começamos a perder clientes, as fofocas corriam pelas ruas, o dinheiro começou a faltar, começamos a nos desfazer de algumas posses. Os quadros foram os primeiros, depois as rendas, alguns móveis e finalmente alguns dos lençóis mais caros. Foi difícil desfazer-se deles, mamãe dizia que vinham de Paris, presentes de casamento.

Foi difícil para mim me desfazer dos quadros. Tinha um em especial que adorava. Ficava em um dos quartos do andar de baixo, costumava ser o escritório do meu pai, agora serve como depósito. No quadro tinha uma moça seminua, apenas um lençol vermelho cobria-lhe o corpo, tinha longos cabelos negros e olhos escuros. A moça parecia observar a quem a olhava, e sorria um sorriso convidativo. Achava-a linda, parecia feliz. Mamãe detestava, dizia que o meu pai admirava-o as vezes por horas. Foi o primeiro que ela se desfez.

Há cinco anos a escravidão acabou, minha mãe achou que iria perder Dita também, porém Dita permaneceu, ajudava no que podia, mas estava velha, já não agüentava todo o serviço da casa sozinha, ajudava-a no que podia, já que todas as manhãs ocupava o meu tempo estudando com a minha tutora Anne, filha de uma amiga da minha mãe.

Anne tinha quase trinta anos, mas era de uma beleza incrível, com os seus longos cabelos loiros e seus olhos verdes claros. Achava-a incrível, culta, inteligente, conversava-mos muito, Anne era o que de mais parecido eu tinha com uma amiga. Ensinava-me português, literatura, uma noção de matemática, etiqueta, inglês entre outras coisinhas do dia-a-dia. Dizia que eu era talentosa com a costura, dei de presente para ela um lindo vestido azul escuro que usava para freqüentar as festas da sociedade. Eu a amava, queria tê-la por perto o tempo todo, mas me contentava com as 8 da manhã até o meio-dia. Às vezes almoçava com a gente, entretanto após o seu noivado não era com tanta freqüência. Ela noivou-se com o Duque de Corvinas, dono dos cafezais da região. Detestava-o, com os seus cabelos ruivos ralos e a sua pele manchada de sarnas. Achava-o grosseiro para a delicada Anne e sabia que assim que se casassem, ela não seria mais a minha tutora, e isso torturava-me.

Após casar-se, vejo-a apenas nas missas de domingo, que agora vou sozinha, já que minha mãe deixou de me acompanhar desde que a bebedeira apossou-se dela. É o único dia que freqüento a sociedade, não gosto tanto, as pessoas cochicham quando eu passo, sei que falam da minha mãe, foi um dos motivos dela ter abandonado a igreja, um escândalo para alguns, mas aquele falatório não fazia bem a ela, acabava bebendo ainda mais.

Há uns dois anos mamãe adoecera, estava tuberculosa. Sabemos que o seu fim é certo, o médico vem vê-la todas as sextas, a sua cara me desanima. Eu cuido de minha mãe como posso, sua enfermidade me deprime, o Conde Orlando têm sido generoso, paga os remédios e chamou uma ajudante para os afazeres domésticos. Essa seria Cristal, uma garota ainda de uns 15 anos. É realmente bela, com a pele cor de canela e longos cabelos cacheados, seus olhos tem uma cor amendoada, quase mel. Cristal logo causou desordem na cidade. Todas as sextas a noite sai, alguns falam que vai praticar a sua magia, começou a seduzir alguns homens casados e outros solteiros, eu não me importo com isso, já estou acostumada com o falatório.

O Conde Orlando conheci quando Anne ainda me dava aulas, era amigo do Duque, herdeiro da maior casa do centro, seus pais tinham falecido há pouco e sentia-se muito só. O Duque me indicou como costureira, falou-lhe que tinha grandes talentos para roupas de gala. Encantou-se comigo, falava que o meu cheiro o embriagava e que adorava os meus cabelos soltos caindo sobre os ombros. Achava-o engraçado, mas não me interessava por ele. Noivei por incentivo de mamãe, precisava casar-me e minha mãe via a grande vantagem que esse casamento iria me trazer. Não queria, sentia-me entristecida quando falava isso com Anne, mas ela me dizia que iria ter que me abandonar e eu me sentiria muito só, seria bom a companhia de um homem na minha vida. Aceitei-o por fim.

Ele vem visitar-me todas as sextas, eventualmente me convida para ir aos bailes com ele aos sábados, às vezes vou, mas não gosto. Eu me sinto mascarada em meio àquelas pessoas cheias de pompas, tenho que sorrir o tempo inteiro e todos me tratam muito bem, e eu detesto esse tratamento hipócrita, porque sei que falam mal de mim e minha mãe pelas costas, agouram o meu noivado, dizem que eu não sou merecedora do Conde com uma mãe cachaceira como a minha. Sempre invento algum mal estar nos bailes e retorno cedo para casa.

Desperto todos os dias às 7 horas, antes Dita me acordava, agora é Cristal. Dita começou a despertar um pouco mais tarde, lá pelas 9 horas e dormia cedo, umas 20 horas, era a idade, de fato estava muito velha. Mas eu adoro ser acordada por Cristal, ela tem uma delicadeza em suas mãos quando me acorda tocando os meus ombros. Eu me sinto ferver quando abro os olhos e vejo os seus olhos amêndoas me encarando e depois quando sai com o seu rebolado delicado. Tem um lindo corpo, um cheiro leve de rosas que invade o meu quarto. É realmente formosa, entendo porque enlouquece os homens, vejo como o Conde olha para ela.

Após Cristal estabelecer-se em minha casa, aprender direito como cuidar de minha mãe e os horários dos remédios, antes tarefa minha, o Conde decidiu me presentear com uma viagem até Londres, para aprimorar os meus estudos. Passaria 1 ano fora, ele sabia da minha afeição pelos estudos graças ao que Anne contava para ele, e sabia que tinha grande fluência em inglês. Fiquei bastante eufórica com a notícia, mas o meu coração se despedaçava por ter que abandonar a minha mãe, temia partir e ela vir a falecer. Todavia sabia da importância daquela viagem, decidi por fim ir. Tinha um e meio ano de noivado já e sabia que essa viagem o estenderia, mantendo a idéia de concretização do casamento longe.

Foi realmente interessante esse ano que passei em Londres. Estudei muita literatura, morei em uma república com estudantes de vários lugares do mundo, cada um com uma cultura diferente. Mas os ingleses, esses eram frios, eram cheios de horários e de modos, eram quase que intocáveis. Mas gostava muito das minhas aulas de literatura. Li bastante Shakespeare, meu professor, Sr. Willistone, adorava-o. Os ingleses o idolatravam, poderia iniciar-se qualquer conversa partindo de Shakespeare. Li Hamlet, Mcbeth, Otelo, Romeu e Julieta e A megera domada que é a obra de Shakspeare da qual mais gosto, não por ter uma personagem com o mesmo nome meu, mesmo porque não gosto de Bianca, acho-a tonta, mas porque adoro Catarina, que recusou-se a se casar com Petrucchio de início e foi indomável boa parte do livro. Acho-a interessante, queria ser como ela, mas não posso me dar a esse luxo.

Contudo o que mais gostava de ler em Londres era a literatura gótica que fervilhava enquanto estive por lá. Tem um conto em particular que adoro, chamado Carmilla do irlandês Sheridan Le fanu, queria estar no papel de Laura e ter o meu quarto invadido todas as noites por Carmilla para sugar-me a vida. Apaixonei-me pelo conto.

Sentia-me desprezada em Londres, via as ruas me encarar com ódio, sentia-me estranha, tinha saudades de casa. Fiz amizade com uma espanhola, Carmem. Ela me contava que os ingleses não gostavam de estrangeiros, temiam perder os seus empregos, achavam-nos sujos, diziam que nós impregnávamos as ruas deles com doenças. E sentia-me como uma praga naquelas ruas.

Carmem e eu conversávamos muito, entendia-a pouco no começo, mas logo começamos a nos entender melhor. Às vezes, quando as noites eram muito frias, Carmem dormia comigo, adorava senti-la perto de mim, a sua pele queimava junto a minha e Carmem tinha um cheiro que me perseguia o resto do dia, doce, suave.

Uma noite ela me acordou, estava bêbada, dizia ter conhecido um americano e que iria fugir com ele para os Estados Unidos, queria me levar junto, ela sabia que eu me sentia sufocada com a minha vida no Brasil, mas era impossível, devia gratidão ao Conde. Carmem partiu, senti-me solitária até a minha volta ao Brasil. Às vezes me escrevia. Dizia que estava desamparada nos Estados Unidos, teve que prostituir-se, o homem a abandonara após dois meses juntos, disse que se cansou dela. Eu queria resgatá-la, mas não podia. Parou de me escrever com o tempo. Sinto falta do seu corpo quente nas minhas noites frias.

Hoje é uma dessas noites, queria vê-la nas ruas dessa cidade enquanto olho pela janela, mas tudo o que vejo são nêvoas. Me sinto realmente só nessas noites, queria fugir, mas as tosses da minha mãe me avisam que devo permanecer e encarar tudo, não quero que ela sofra mais. Tudo o que me resta agora é esperar o meu casamento e poder dar uma vida confortável para a minha mãe até o fim de seus dias. Mas o que virá depois é uma incógnita.

Priscila de Athaides Ribeiro – 04/10/2007