terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Reflexões não solicitadas - Bagagens

 


Parte XIX

Qual o preço que pagamos ao tempo para que a simples memória de alguém nos cause um sentimento de apatia? Quando a simples lembrança já não mais nos abala, mas torna-se enfadonha em nossas memórias, nos distanciando de algum reconhecimento daquilo que já fomos. Seria esse preço uma perda de algum pedaço de nós? Seria talvez tornarmo-nos frios e fechados?  Quantas vezes não compartimentamos nossas vivências e nos enchemos de tédio, aguardando o que vem além do horizonte, tentando dar lugar a novas histórias e deixando pessoas, lugares, momentos e situações para trás? A vida segue o seu rumo em seu ritmo descompensado e tiramos tudo do lugar enquanto a estrada segue cheia de percalços. E quanto tempo leva até que uma história já não nos mova mais? E o que deixamos de nós pelo caminho? Dissolvit ut glaciem.

Cansei de carregar o mundo nas costas, como um Atlas castigado. Não faz sentido essa culpa a que me compele. Não estou só nessa história, não sou a portadora de todos os erros, se é que eles não foram apenas a criação de egos feridos. Houveram escolhas que nos trouxeram a este ponto que são muito mais antigas que a nossa história e que se refletiram em nossos traumas mal resolvidos. Estamos feridos e pesamos em nossos atos essa bagagem que nos atormenta. Que chance teríamos quando a falta de resoluções de problemas passados nos guia nesta breve relação que nos permitimos ter? Estamos assombrados diante da face de experiências destrutivas. Não há espaço para nós, pois esse já foi tomado pelo amargor de outras vivências. Não há leveza quando não nos apoiamos para nos ajudar a combater as crises que ainda nos chacoalham.

O que quer que queiramos construir precisamos de estrutura, 4 estacas fincadas no chão formando pilares para que pequenos abalos não os façam desabar. 11:11. Não há amor quando contratempos nos afastam e recusamos a enxergar o que nos é ofertado. Amor às vezes nos leva ao topo da montanha, às vezes ao mais profundo abismo, como um arco-íris formando uma ponte entre nossas ciladas emocionais eufóricas ou deprimentes, mas buscamos nos manter em terra firme, tentando chegar a um lugar comum, sem escombros que nos bloqueiam. Não há amor quando tudo desaba e nos refugiamos em um local murado, impedindo que o outro nos alcance, proibindo que lugares sejam visitados. Amor flui como um rio que fertiliza toda sua margem. Há vida ali, como as írises que floreiam a sua beirada fluvial, anunciando o fim de um temporal. Há vida que cresce nesse espaço quando construímos estruturas para iniciarmos o nosso lar, tijolo por tijolo. Mas agora eu observo as flores apodrecerem nesta terra infértil a que me encontro.

E neste seu local árido não há amor. Então porque ainda há apego? Eu já entendi o que as suas secas palavras me dizem nas entrelinhas. Indiferença é o oposto de amor, você me disse certa vez. E não há nenhum cuidado na forma a que me dirige, nenhum interesse em saber sobre mim. Eu preciso assimilar essa insensibilidade que advém de ti. E isso me quebra, pois sinto a sua falta. Mas me falta você até não me faltar mais e eu já possa administrar a minha vida sem que a sua lembrança me tire de algum espaço mental e me sugue para um futuro fantasioso de resoluções inexistentes. Me sinto exausta procurando sentido para essa longa espera em busca de conclusão, esse repouso que me desconecta da realidade concreta. Não há amor, pois no amor há busca de soluções e bem-querer. O que solucionamos ao nos afastar? Sinto que me afundei nessa areia movediça e só me resta estratégias de resgate. Você não é a minha salvação. E como haveria de ser? Preciso te tirar desse pedestal em que te coloquei. Você não é o imperador do meu mundo. Você não me comanda. E quem é você? O reflexo daquilo que projetei, nada mais. E eu quero te repelir para longe dos meus sentimentos, cortar de vez esses laços mentais que se emaranham, desatando nó por nó, até que a sua agridoce lembrança seja apenas insossa.

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