Parte XIX
Qual o preço que pagamos ao tempo para que a
simples memória de alguém nos cause um sentimento de apatia? Quando a simples
lembrança já não mais nos abala, mas torna-se enfadonha em nossas memórias, nos
distanciando de algum reconhecimento daquilo que já fomos. Seria esse preço uma
perda de algum pedaço de nós? Seria talvez tornarmo-nos frios e fechados?
Quantas vezes não compartimentamos nossas vivências e nos enchemos de tédio,
aguardando o que vem além do horizonte, tentando dar lugar a novas histórias e
deixando pessoas, lugares, momentos e situações para trás? A vida segue o seu
rumo em seu ritmo descompensado e tiramos tudo do lugar enquanto a estrada
segue cheia de percalços. E quanto tempo leva até que uma história já não nos
mova mais? E o que deixamos de nós pelo caminho? Dissolvit
ut glaciem.
Cansei de carregar o mundo nas costas, como um
Atlas castigado. Não faz sentido essa culpa a que me compele. Não estou só
nessa história, não sou a portadora de todos os erros, se é que eles não foram
apenas a criação de egos feridos. Houveram escolhas que nos trouxeram a este
ponto que são muito mais antigas que a nossa história e que se refletiram em
nossos traumas mal resolvidos. Estamos feridos e pesamos em nossos atos essa
bagagem que nos atormenta. Que chance teríamos quando a falta de resoluções de
problemas passados nos guia nesta breve relação que nos permitimos ter? Estamos
assombrados diante da face de experiências destrutivas. Não há espaço para nós,
pois esse já foi tomado pelo amargor de outras vivências. Não há leveza quando
não nos apoiamos para nos ajudar a combater as crises que ainda nos chacoalham.
O que quer que queiramos construir precisamos de
estrutura, 4 estacas fincadas no chão formando pilares para que pequenos abalos
não os façam desabar. 11:11. Não há amor quando contratempos nos afastam e
recusamos a enxergar o que nos é ofertado. Amor às vezes nos leva ao topo da montanha,
às vezes ao mais profundo abismo, como um arco-íris formando uma ponte entre
nossas ciladas emocionais eufóricas ou deprimentes, mas buscamos nos manter em
terra firme, tentando chegar a um lugar comum, sem escombros que nos bloqueiam.
Não há amor quando tudo desaba e nos refugiamos em um local murado, impedindo
que o outro nos alcance, proibindo que lugares sejam visitados. Amor flui como
um rio que fertiliza toda sua margem. Há vida ali, como as írises que floreiam
a sua beirada fluvial, anunciando o fim de um temporal. Há vida que cresce
nesse espaço quando construímos estruturas para iniciarmos o nosso lar, tijolo
por tijolo. Mas agora eu observo as flores apodrecerem nesta terra infértil a
que me encontro.
E neste seu local árido não há amor. Então porque
ainda há apego? Eu já entendi o que as suas secas palavras me dizem nas
entrelinhas. Indiferença é o oposto de amor, você me disse certa vez. E não há
nenhum cuidado na forma a que me dirige, nenhum interesse em saber sobre mim.
Eu preciso assimilar essa insensibilidade que advém de ti. E isso me quebra,
pois sinto a sua falta. Mas me falta você até não me faltar mais e eu já possa
administrar a minha vida sem que a sua lembrança me tire de algum espaço mental
e me sugue para um futuro fantasioso de resoluções inexistentes. Me sinto
exausta procurando sentido para essa longa espera em busca de conclusão, esse repouso
que me desconecta da realidade concreta. Não há amor, pois no amor há busca de
soluções e bem-querer. O que solucionamos ao nos afastar? Sinto que me afundei
nessa areia movediça e só me resta estratégias de resgate. Você não é a minha
salvação. E como haveria de ser? Preciso te tirar desse pedestal em que te
coloquei. Você não é o imperador do meu mundo. Você não me comanda. E quem é
você? O reflexo daquilo que projetei, nada mais. E eu quero te repelir para
longe dos meus sentimentos, cortar de vez esses laços mentais que se emaranham,
desatando nó por nó, até que a sua agridoce lembrança seja apenas insossa.
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