Parte XX
Deixe-me ir, querido, com as doces memórias dos momentos que tivemos.
Será que você se perdeu em profunda tristeza, ou você era o espelho que me
refletia mostrando a beleza de mim? Hoje vejo ecos do homem que você era. Não
há doçura nas suas palavras ressentidas. Mihi nunc contraria. Como continuar admirando nossos
momentos ternos quando você se amarga na mais breve menção do que fomos e se
recusa a construir novas memórias?
Deixe-me ir em
silêncio. Já conheço o caminho percorrido depois de você. Estendi a ti as
minhas mãos para essa longa caminhada e fui novamente rejeitada. Mas já consigo
seguir em paz ciente de que há vida após você. Eu não sou a tua salvadora. E
como haveria de ser? Sou talvez parte da sua ruína, o gosto agridoce de uma
bela história que parecia boa demais se não fôssemos tão complexos em nossas
individualidades, perdidos em traumas que nos perpassam, nos impedindo de viver
histórias sem o amargor daquilo que nos tornou tão temerosos em compartilhar
uma vida a dois, na pureza que uma nova história deveria ser. Mas nos isolamos
tolamente em nossas prisões mentais, deixando que o peso de escolhas erradas
nos direcionasse para um fim inconclusivo, sem redenção ao final. Você já
tem respostas para as suas desventuras, e não faço parte delas. Não mais. Sou
apenas um subterfúgio de desejos tortos que te assolam em noites solitárias e
te afundam em distorções dos meus mais profundos segredos sujos. Eu não sou a tua
salvadora, mas um desvio que te serviu com o propósito de te tirar brevemente
de uma vida sem brilho que te assombrava lentamente. E agora você se afunda
nessa escuridão enquanto eu procuro ser a luz que me guia para longe deste seu espaço abismal.
E eu não preciso
de um salvador, a minha caminhada solitária me permite enxergar as cores do
mundo com cuidado, toda a luz e sombra que se refrata em penumbra entre
esse momento que saio desse abismo que se colocou entre nós. Além do
arco-íris posso ver que há outro final feliz para mim. E eu mesma me conduzo a
essa história, pois sou a protagonista da minha vida e você sempre foi um
capítulo nesta saga contínua que me reverbera para além deste lugar em que você
nos limitou.
Eu queria que
fosse você. Por todo esse tempo eu sonhei que era você. Como uma taça
transbordando sendo ofertada. Você foi esse amor cheio de potencial. O que
teria sido? Eu não sei. Hoje vejo apenas a sombra de um homem que se perde em
meio a tanta descrença e falsa modéstia, que parece desistir do mundo com um
amargor expelido por não estar neste lugar-comum como esperado e cobrado que
você estivesse. Mas nada se espera de você, entenda. As suas não conquistas dizem
respeito apenas a você e são consequências de suas escolhas e apenas delas. E quem é
você? Que diferença faz para o mundo a sua trajetória? Você se afunda em
remorso disfarçado de um orgulho tolo por tudo aquilo que você não é e nem fez
questão de ser. Não seja. Você é só poeira cósmica em uma ínfima presença neste
tempo-espaço que perpassa. Assim como eu. Que a gente procure não mais criar complicações que
nada nos adicione. Que a gente nos permita mais, deixe o tempo nos guiar para novas histórias, abertos a toda a complexidade que carregamos com acolhimento, não mais repulsão. Se não é para ser, que nada nos prenda a uma malfadada
história. Sigamos, leves do peso de que poderíamos ter feito mais ou nos entregado menos. Já passamos e tivemos bons momentos que posso guardar neste mar de
memórias que me invade como ondas. Eu sei das minhas tentativas e erros. Eu
sei que insisti e fui sempre aberta a novos retornos enquanto você me respondia
com rejeição. Que seja. Isso passa. Tudo passa. A gente passa. E eu passo
adiante, procurando não mais olhar para trás para um breve patético momento de
acolhimento oferecido.
Que seja, que não
seja. O que haverá de ser. Que é. O que não é. Não somos. Eu entendo, e te
liberto para seguir adiante pelos seus caminhos por ora solitários. Talvez as
moiras nos teçam novas histórias ou nos conduzam a velhos caminhos e novos personagens
adentrando em nossas trajetórias. Tudo é cíclico e há uma certa previsibilidade
nas linhas que nos costuram as vidas. Não há pontos finais na roda da fortuna. Talvez haja mais amorosidade em um futuro próximo. Aqui sempre haverá um lugar de perdão e acolhimento. Aqui há amor.
Mas deixe-me ir
agora seguindo pelo caminho que se estende daqui. Há loucura nas minhas
escolhas, eu sei. Uma busca por uma conexão com algo maior do que essa monótona
vida. Vejo sinais em todos os cantos, misticismos em todos os sonhos e
pensamentos. Eu converso com o universo que me rodeia, me conecto com as
energias que me protegem, eu manifesto. Há loucura nessa crença procurando ver
além do que o lógico me limita. Mas há neste processo um escapismo da minha
prisão mental que por tanto tempo me tornou melancólica. A melancolia já não me
assombra mais, ainda que momentaneamente. Há loucura nesse procedimento, mas há
esse sentimento de conexão com algo maior do que a minha mente agitada e
perdida em constantes cenários de devastação e pessimismo. Este tem sido o meu local de
salvação que me ilumina e atiça a minha sede de conhecimento. O que encontrarei
atrás das cortinas desse véu que me venda os olhos ainda está enevoado de
incógnita. Talvez não devesse mesmo me importar tanto com o velho por detrás da
cortina, pois a inteligência, a coragem e o amor sempre estiveram presentes em
minha trajetória. Eu sou a minha salvadora.
Eu te deixo ir.
Te prometo. Já não te buscarei. Siga em paz. Fique bem. Seja feliz. Eu não
tenho mais pretensões de te manter preso ao que fomos e não fomos. Não fomos. É uma
pena. Mas te liberto desse nó que nos prende em algum emaranhado de
possibilidades que nunca se concretizaram. Há outras histórias a serem
contadas. Confia. Ainda não é o nosso último suspiro. E talvez a roda da
fortuna nos conduza de volta com uma nova vivência e visão de mundo para nos
enchermos de risos e felicidade compartilhada.