quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Lendas de Manguezal - Parte IX - Os sonhos

Me mudei para São Luís, capital do estado do Maranhão, há dois anos. Tive sorte de passar em história na UFMA e fui acolhido pelo meu irmão mais velho, Raoni, que se estivesse vivo hoje, estaria perto de fazer 29 anos. Tenho mais três irmãos que ainda moram na cidadezinha de Manguezal. Uma irmã de 17 anos chamada Janaína e dois irmãos gêmeos com 15 anos, Acir e Jandir. Tinha um irmão um pouco mais velho do que eu, que se chamava Joacir, e que desapareceu no convento abandonado da cidade quando tinha 11 anos de idade, e que se estivesse vivo hoje, teria 25 anos. E tinha uma irmã mais nova chamada Jurema, que desapareceu nas matas de Manguezal quando tinha apenas 8 anos de idade, há dez anos atrás.

Raoni era um brilhante engenheiro elétrico e trabalhava na companhia elétrica de São Luís, Equatorial Energia. Quando me mudei para São Luís, o meu irmão namorava uma residente de medicina da UFMA, chamada de Néia, com quem planejava noivar em breve. Ele tinha alugado um apartamento pequeno e aconchegante no centro da cidade que tinha dois quartos. O meu irmão já morava na cidade há 10 anos quando me mudei para cá. Ele me acolheu no seu apartamento e conseguiu me arranjar um emprego como garçom em um restaurante local de frutos do mar, onde trabalho até hoje. Ele e Néia dormiam em uma suíte e eu dormia no outro quarto, que antes servia como um escritório.

Estava morando com eles há alguns meses e como o aniversário do meu irmão se aproximava, planejei com Néia uma pequena reunião surpresa no restaurante onde trabalho, chamando os colegas de trabalho dele e amigos da época da faculdade, assim como os meus pais e irmãos. Faltando um mês para o seu aniversário, no café da manhã, Néia comentou algo que me chamou a atenção:

- O seu irmão acordou no meio da noite gritando e se debatendo todo. Foi bem assustador. Conte para Moacir com o que você sonhou, meu amor.

- Imagina que eu sonhei com aquela cachoeira que fica no rio Pupti, aquela onde encontraram o seu amigo Santiago dez anos atrás, Moacir. E sumiu também aquela outra menina, qual o nome dela mesmo? Ah, Jaciara. Sabe aquela cachoeira da gruta? – Não tinha como me esquecer - É o segundo sonho que tenho com aquele lugar. Devo estar ficando com saudades de Manguezal. – Disse Raoni, rindo.

- Está perto de você completar 11 anos morando em São Luís, não é mesmo? Foi o que, uma semana antes do seu aniversário? Acho que poderíamos voltar para Manguezal e comemorar o seu aniversário lá, não?

- Não... – Néia interrompeu. – Vamos comemorar aqui na capital. Nas férias estamos planejando visitar a cidade juntos, né? Agora estou muito ocupada com as escalas e o seu irmão está a frente de um grande projeto na Equatorial.

- O tonto do meu irmão acredita que algo terrível acontecerá comigo quando completar 11 anos aqui. A cidade é cheia de histórias absurdas! O povo de lá vive em uma histeria coletiva! Um monte de asneira.

- Tá, talvez as pessoas da cidade viva em uma histeria coletiva mesmo e aquilo tudo seja mais coisa da nossa imaginação do que real. Mas como você explica as mortes, os sumiços e tudo estranho que você já presenciou, Raoni?

- Sabe o que eu acho? Que existe uma sociedade secreta muito antiga naquela cidade, que fazem parte alguns moradores das famílias mais antigas. Um bando de psicopata que querem manter essas lendas vivas e deve ter um monte de encenação ali. Tudo para forçar os moradores a não saírem de lá e também afastar quem é de fora.

- E porque eles se dariam a todo esse trabalho?

- Não sei. Receio da gentrificação, talvez? Sabe o que eu acho, que aquele bando de loucos não querem que ninguém saia por aí falando sobre a cidade para não atrair ninguém, e assusta quem se aproxima para que o povo não construa as suas casas de veraneio por lá e acabem poluindo o local ou algo assim. O que eu acho idiotice. A cidade tem um potencial enorme e poderíamos ter um crescimento demográfico e econômico excelente. E pense no potencial na área de turismo! Mas enfim, não quero mesmo mais pisar os pés naquela cidade de bando de gente louca que acredita em monstrinho dentro de gruta e crianças dormindo em convento abandonado para não morrerem.

- Não sei, Raoni, já vi umas coisas bem bizarras lá e você também. Acho difícil serem algo feitos pelos próprios moradores. Porque matarem os seus filhos? Para mim, não faz sentido nenhum isso o que você me disse. E esses sonhos que você teve... Você sabe o que dizem, não? É assim que começa. Com o que você sonhou exatamente?

- Olha, não me lembro dessas mortes todas não, e assim, pessoas morrem. Muitas dessas crianças devem ter morrido por que o acesso a medicina lá é precário ou por negligência mesmo, daí fica um burburinho e o povo acha que é negócio de maldição e aumenta as histórias. E quanto aos sonhos, o primeiro foi tranquilo, sonhei que um índio estava explorando a gruta. O local era muito espaçoso e lindo. Nunca entendi porque as pessoas resistem tanto em explorar aquele lugar! Ele achou um túnel largo e adentrou. Foi só isso. Mas o dessa noite, sonhei que o índio estava caminhando nesse mesmo túnel que ficou muito escuro e ele ouvia algo se rastejando pelo local. Em seguida ele achou um lugar iluminado no final do túnel, que tinha um formato triangular e cheio de ouro nas paredes. Do teto vinham várias raízes que pareciam se mexer. As raízes começaram a ir em direção a ele, até se encravarem por todo o seu corpo, o deixando pendurado com as pernas fechadas e os braços abertos. Tinham raízes até em seu rosto. Foi uma imagem assustadora.

- Vixe, não à toa você acordou daquela forma, meu amor. Mas vai ficar tudo bem. Se você quiser, consigo uma receita para clonazepam.

- Que isso, Néia. Foi só um pesadelo. Ficarei bem. E vamos logo, que eu dou uma carona para vocês, senão iremos nos atrasar.

Passei o dia com aquela história na cabeça, mas precisava me concentrar nas aulas e depois ir para o trabalho. Fiquei me perguntando quem seria aquele índio e o que aconteceu com ele na gruta. Será que o mesmo havia acontecido com Jaciara? Fiquei também preocupado com o meu irmão. Ele sempre foi cético quanto ao que acontecia na cidade, questionando até as coisas estranhas que viu acontecer, dizendo que foi induzido a acreditar naquilo. O plano dele sempre foi o de sair da cidade assim que pudesse, o que o fez ainda com 17 anos, se mudando para Maranhão para cursar engenharia elétrica na UFMA. Ele me ajudou bastante nos estudos quando disse que queria cursar história, fazendo questão de me acolher sempre que precisava ir para a capital. Tinha planos de fazer o mesmo pela minha irmã. Ele sempre mandava dinheiro para os meus pais: Kadu, um pescador da região e Ceci, pedagoga da cidade. Os meus pais sempre tentavam convencer Raoni para retornar para a cidade e planejam visita-lo pela primeira vez, com o plano de tentar persuadi-lo a voltar para Manguezal. Eles tinham muito medo do que poderia acontecer com o filho mais velho após ficar tanto tempo longe da cidade.

Ainda naquele dia, após voltar do trabalho, um pouco depois das 23:00, percebi que Raoni e Néia já estavam no quarto. Provavelmente dormindo. Tomei um banho, e ainda no chuveiro ouvi o meu irmão gritar. Me cobri em uma toalha e corri para o quarto. Néia estava em um canto do quarto enquanto Raoni se debatia na cama. Percebi que ela estava com o rosto um pouco vermelho. Tentei acordar Raoni, que atordoado, olhou para mim, com o olhar ainda assustado. Demorou alguns minutos para ele entender o que estava acontecendo. Néia ainda estava no canto, um pouco apreensiva. Ele olhou para mim, dizendo:

- Moacir? O que... Quê que aconteceu?

- Não sei, Raoni. Estava tomando banho quando te ouvi gritar. Néia, você está bem?

- Eu não sei. – Disse a mulher, ainda atordoada. – O seu irmão começou a se debater enquanto dormíamos e quando fui tentar acordá-lo, recebi um tapa. Ele começou a gritar e saí da cama, quando você entrou.

- Eu tive aquele sonho de novo. – Disse Raoni. – Mas dessa vez era uma mulher indígena que entrava na gruta. Ela se deparou com algo horrível ali no final daquele túnel. O índio que eu tinha sonhado antes estava sofrendo uma espécie de mutação horrível. Ainda estava pendurado pelas raízes que se moviam dentro dele, parecendo que estavam injetando algo ali. O índio havia dobrado de tamanho, os seus dedos estavam grudados nas mãos como se estivessem virando uma coisa só, as sues pernas pareciam que estavam com elefantíase, mas estavam começando a grudarem uma na outra. A sua barriga estava exposta, com entranhas que se mexiam como se estivessem vivas. O seu rosto estava muito inchado, os olhos pareciam grandes olhos de peixe, completamente pretos e podia-se ver os seus dentes crescidos em uma boca que parecia derreter. A mulher estava bastante assustada, mas o índio falou em linguagem indígena, que não sei como consegui entender: "Eu sou Conorihi, antes conhecido como Urihi. Sou a união dele com essa terra chamada por vocês de Conocarpus. Por minhas raízes passam os seus antepassados e os seus descendentes. Eu os conheço e vocês fazem parte de mim. Sou eu que garanto a sua moradia e a abundância de suas comidas. Aiyra, na primeira noite de lua escura que se segue após essa data, você deve retornar a esse local com o seu povo e me trazer um animal da minha mata. Eu irei cuidar de vocês e provarei sempre abundância de comida. Mas se assim não o fizerem, passarão por tempos de fome e doenças.". Da boca do que era antes o índio saiu tentáculos que me lembravam uma anêmona que pareciam vir na minha direção, vi então que a mulher havia levado uma capivara com ela, que foi tomada por esses tentáculos enquanto soltava grunhidos de dor, parecendo ser sugado pelos tentáculos por dentro. Foi então que acordei e vi o teu rosto horroroso, Moacir.

- Afff... não sei como você consegue brincar depois desse pesadelo horroroso. Vá se tratar, meu irmão. Você sabe o que penso sobre isso tudo, não é?

- São só pesadelos, Moacir. E Néia, me desculpa se te machuquei. Estava inconsciente.

- Tudo bem, meu amor. Mas acho melhor você dormir no sofá essa noite. Não quero me arriscar.

Demorou um pouco mais de uma semana até que Raoni acordasse novamente no meio da noite, gritando e vomitando água. Dessa vez ele não quis falar nada a princípio, mas assim que chegou o fim de semana, ele foi até o restaurante onde trabalho e pediu para conversar. De acordo com ele, os sonhos haviam parado de acontecer, mas naquela noite ele sonhou com os índios novamente, Urihi e Ayira. No sonho eles eram amantes e haviam se encontrado na gruta, antes de Urihi ter virado aquela coisa monstruosa. Eles pareciam ir sempre na gruta para transarem e um dia o índio ouviu algo em uma caverna e foi investigar, mandando Ayira ir embora. O que o meu irmão sonhou em seguida foi Ayira tendo um bebê. Mas o que saiu de dentro dela era um bebê monstruoso que tinha tentáculos nos lugares das pernas e dos braços, e olhos negros que pareciam de peixe, a boca era deformada e a criança tinha um choro estridente ensurdecedor. A índia morreu no processo e os aldeões ficaram aterrorizados com o que viram. Eles jogaram a criança ao mar, que logo ficou revolto e a aldeia foi acometida por uma tempestade horrível. O ancião da tribo profetizou que o bebê retornaria para se vingar e que tomaria todo o litoral em uma enorme onda. Em seguida o meu irmão disse que viu um tsunami ir em sua direção no litoral de Manguezal e foi nesse momento que acordou vomitando. Ele disse que se sentiu afogar e o seu corpo se retorcer, levado pela gigante onda.

Fiquei extremamente preocupado com o meu irmão e tentei convencê-lo a retornamos para Manguezal no próximo dia, mas ele ficou muito relutante e disse nunca mais querer pisar naquela cidade, que a culpa daqueles sonhos horrorosos são as histórias que as pessoas contam ali. Eu disse a ele que, apesar de reconhecer alguns elementos dos sonhos, nunca tinha ouvido aquelas histórias antes e que parecia que ele teve acesso a histórias mais antiga do que conhecemos. Ele apenas afirmou que aquilo eram sonhos e que sonhos são assim, uma mistura de coisas sem sentido. Pude perceber que ele estava abalado pelos sonhos que estava tendo e tentei convencê-lo a aceitar a proposta de Néia e tomar algum remédio para dormir. Ele ficou de reavaliar se seria necessário, pois precisava de energia para continuar o projeto na empresa e temia ficar muito lerdo com os efeitos do remédio.

Uma semana após aquela conversa, Raoni acordou novamente atordoado. Dessa vez, Néia veio me acordar dizendo que precisávamos levá-lo ao hospital universitário da faculdade de Maranhão, pois o meu irmão acabou se jogando em um espelho que tinha no quarto deles e estava cheio de cortes pelo corpo, alguns profundos. Corremos para o hospital, em que ele ficou internado. Liguei para os meus pais e pedi que viessem o mais rápido possível. Faltava um pouco mais de uma semana para o aniversário dele, porém faltava apenas dois dias para ele completar 11 anos morando em São Luís. Passei a noite no hospital e no dia seguinte, ainda com os efeitos dos remédios, Raoni me chamou. Perguntei se ele estava bem, mas ele apenas disse que queria me contar o sonho que teve.

- Moacir, acho que você tem razão. Tem algo me perseguindo nos meus sonhos. Eu sonhei com elas essa noite, as cinco bruxas. Elas estavam na gruta, pude vê-las bem. A ruiva, a morena com o rosto desfigurado, a jovem loira cega, a anciã e a guerreira. Elas estavam lá, olhando para Conorohi, pedindo a ajuda dele. O que vi era amedrontador! Conorihi estava muito diferente. Ele era gigante, os seus braços tinham virado vários tentáculos e no que antes eram as suas pernas, tinha uma cauda gigante que parecia tão longa quanto o túnel onde ele antes estava e que o fazia se rastejar pelo local. Da sua barriga saíam pequenos tentáculos que se mexiam freneticamente, o ajudando a se locomover. Os seus olhos eram gigantes olhos de peixe negros, no lugar do nariz tinham dois buracos enormes e da sua boca molenga e deformada, tinham dentes muito grandes e afiados. A criatura parecia ter vários metros agora, mas as mulheres não pareciam teme-lo. Elas então se deitaram nuas em um círculo e da boca daquele monstro saíram vários tentáculos, que começaram a acariciar o corpo das mulheres e penetrar-lhes em suas vaginas. Elas pareciam se contorcer de prazer. A anciã deu à luz a um ser humanoide feito de lama, que ela levou para o mangue. A guerreira deu à luz a uma onça, que ela largou na floresta. A jovem loira deu à luz a um bebê que tinha uma cauda de peixe, da cintura para abaixo, levada até o mar da cidade. A jovem de cabelo negro deu à luz a uma criança aparentemente normal, mas tinha guelras no pescoço e as suas mãos e pés tinham nadadeiras entre os dedos, a criança também tinham olhos de um verde estranho e brilhante, e foi colocada na gruta do rio Pupti. A mulher ruiva deu à luz a 11 sementes, que ela plantou no miolo da floresta na forma da cabala judaica, sabe? Eu vi os filhos delas me cercarem e comecei a me fundir com aquela terra, sentindo a dor e o sofrimento que dali emana, parecia que eu estava derretendo. Foi uma dor horrível! Acordei aqui no hospital. O que aconteceu?

Expliquei para o meu irmão que, enquanto ele dormia, ele se jogou no espelho que estava em seu quarto. Raoni jurava não se lembrar de nada daquilo e dizia estar muito assustado com o que viu e sentiu. Ele podia jurar que sentia o seu corpo ainda derretendo e se fundando a aquela terra, mas o convenci que a dor que ele sentia se dava aos cortes que sofrera. E que logo ele ficaria bem. No fundo eu sabia que não era verdade.

No dia seguinte a nossa conversa, os meus pais chegaram de Manguezal, adiantando a viagem que fariam para o aniversário de Raoni. A minha mãe chorava muito e o meu pai tentou convencer o médico a levar o meu irmão com eles, mas o médico plantonista disse que alguns dos cortes foram muito profundos e o rapaz ainda precisava de mais algum tempo para se recuperar. Naquela noite Raoni subiu no terraço do hospital e se jogou, morrendo no processo. A minha mãe, que estava no quarto quando ele acordou atordoado, disse que ele gritava que Conohiri havia adentrado a sua mente com os seus tentáculos, que estavam se mexendo em sua mente. Segundo ela, ele parecia um maníaco ensandecido, correndo até o terraço como se quisesse se livrar do que estava sentindo, derrubando tudo e todos no seu caminho. Hoje, enquanto relato essa história, completa 1 ano da morte do meu irmão. Alguns dias depois do incidente, Néia se mudou do apartamento e não tivemos mais contato. Ela nem foi ao enterro do meu irmão, pois passou a temer a cidade onde ele nascera e foi enterrado. Tive de me mudar no mês seguinte para um local mais em conta, já que não tinha como manter o aluguel daquele apartamento. Os meus pais fizeram questão de enterrá-lo na cidade onde ele nasceu, a pequena cidade costeira de Manguezal, coberta por uma mata densa e com um rico mangue, repleta de lendas e maldições que perpassam a nossa história e que nos fazem viver com medo e alerta, sabendo que o nosso destino será sempre sombrio e repleto de tragédias

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