segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Lendas de Manguezal - Parte VII - O canto do mar

Se você olhar para o mar de Manguezal e prestar bastante atenção, você consegue ouvir choro de crianças vindo da brisa. Muitas pessoas dizem ouvir esse som por aqui, atormentando os seus sonhos. A pequena cidade costeira de Manguezal não é um bom lugar para ser criança, apesar das muitas aventuras que a cidade pode oferecer. Dizem que próximo ao farol da cidade há uma criatura marinha feita com os bebês que foram jogados ao mar durante os longos anos de funcionamento do convento da ordem de Jesus, hoje em dia abandonado, mas que foi fundado na cidade poucos anos após a chegada das primeiras missões jesuítas a abarcarem Maranhão. Os moradores da cidade acreditam que quando essa criatura marítima despertar, irá inundar a cidade com um enorme tsunami. Todos temem o dia que isso venha a acontecer. Não existe escapatória daqui. Quem nasceu em Manguezal, tem de morrer na cidade se quiser ter uma longa vida, pois os que se afastam por 11 anos certamente morrerão ou ficarão loucos. E talvez nem assim haja garantias disto.

O famoso monstro marinho do farol não é a única criatura marinha que nos assombra. Existe uma outra lenda que contamos por aqui. É uma lenda mais comum entre os pescadores. Dizem eles que existe uma espécie de peixe que vive na nossa costa que tem uma longa cauda e é muito veloz, conhecido por aqui como Ipupicema. O sonho de todos os pescadores é conseguir um dia pescar esse peixe e traze-lo até a terra firme, pois quem um dia conseguir esse feito, viverá uma vida de abundâncias que se estenderá aos descendentes até que a cidade seja tomada pelo mar. Dizem que essa criatura sabe a localização de várias caravelas que afundaram próximo da cidade, carregando dezenas de baús de tesouros. Os pescadores também acreditam que Ipupicema conhece uma passagem secreta até a gruta que fica atrás de uma queda d'água, no rio Pupti, que fica na mata de Manguezal, e que nesse lugar tem muito ouro e pedras preciosas, mas que é vigiado por uma outra criatura monstruosa que mora no local. Ao mesmo tempo que eles tentam pescar o lendário peixe, os pescadores o temem. Alguns afirmam que esse peixe gigante é um dos filhos das cinco bruxas da mata com a divindade indígena Conorihi, que mora nesta gruta localizada atrás da cachoeira. As histórias que se seguem é que quem já conseguiu pesca-lo, o viu se transformar em uma bela mulher com longos cabelos dourados, e essa mulher tem um canto mesmerizante, que os deixam atordoados e admirados. Os que ouvem o canto dela serão tomados pelo incontrolável desejo de se jogar ao mar, seguindo-a até o fundo.

É muito comum encontrarmos partes dos corpos dos pescadores que seguiram Ipupicema aparecendo na beira do mar durante os dias que se seguem após o ocorrido, trazidos pela correnteza. Essas partes chegam aos poucos durante dias sendo encontradas ainda frescas e parcialmente mastigadas. O estômago é sempre o último a aparecer. Quem o encontra sabe o que tem dentro do órgão, partes do corpo do pescador ainda sendo digeridas. Não se sabe para onde a mulher do cabelo dourado os levam e os desmembram, mas o que se sabe é que ela os mantêm vivos, alimentando-os com pedaços dos seus membros, jogando-os ao mar, parcialmente comidos. Dizem ser uma resposta a ambição desses pescadores.

Há quem diga que as vezes ela aparece nas pedras da ilha onde se localiza o farol da cidade e começa a cantar, seduzindo algum garoto da cidade de sua escolha, que escuta o seu chamado e o faz segui-la para o fundo do mar. Isso costuma acontecer em madrugadas tempestuosas e de mar revolto, o canto parece vir das pedras do farol e o rapaz se sente compelido a segui-lo, como se estivesse enfeitiçado. Quem vê, não pode fazer nada, o canto é mais forte do que amarras e do que portas. O garoto sempre dará um jeito de ir até o mar, mesmo que para isso ele tenha de matar quem estiver na sua frente ou deixar algum membro para trás. Alguns garotos morreram esmagados quando foram amarrados em suas camas e tiveram os pulmões cheios de água, como se tivessem sido afogados mesmo estando longe da água. Quem vai até as pedras da minúscula ilha onde fica o farol, jura nunca ver nada. E com a maré revolta e a forte tempestade, a maioria dos moradores prefere evitar ir até o local. Não raras vezes um ou outro pescador se afoga em dias como esse e os moradores preferem ficar longe da praia, com medo que aquele seja o dia que um tsunami inunda a cidade, de acordo com as lendas.

O garoto que é chamado pelo canto do mar mergulha nas ondas e desaparece. Sempre quando isso acontece o mar se acalma e há abundância de peixes, camarões, ostras e lagostas prontos para serem pescados. O corpo do garoto desaparecido reaparece nas pedras algumas semanas depois, grudado nas pedras próximo ao farol, como se começasse a ser absorvido por elas, ainda respirando, mas inconsciente e com as entranhas expostas e cheias de crustáceos. A pele dele passa a ter um tom pálido cinza-azulado com o toque frio. Seus olhos passam a ser comidos por guarás, aves comuns da região. Não tem como desgruda-lo das pedras, pois ele passa a fazer parte dela e com o tempo o corpo do garoto é completamente absorvido por elas. Algumas pessoas que mergulharam naquela região relataram que viram o que pareciam ser pálpebras grudadas nas pedras, piscando vazias. Eu mesmo já presenciei um dos meninos que ouviram o canto do mar sendo lentamente absorvido pelas pedras onde fica o farol e é uma imagem agoniante e muito sofrida de se ver.

Quem já mergulhou perto da ilha do farol também diz avistar nas pedras submersas um longo túnel. Muitos acreditam que esse túnel conecta o mar de Manguezal à gruta da cachoeira. Dizem ser ali que Ipupicema leva as suas vítimas. Talvez não caiba a nós descobrirmos a verdade desse local ou o que ali se esconde a ponto de causar esses horrores aos garotos que são levados por Ipupicema, assim como os pescadores que ousam pesca-la. Os moradores da cidade temem o local, pois aqueles que o exploraram dizem sentir uma presença muito estranha seguido de uma corrente de água violenta que os expulsam do local, alguns não sobreviveram à força das águas e de lá eles conseguem escutar um eco horrível vindo das paredes, como um canto tortuoso e amedrontador, ensurdecendo os seus ouvidos a ponto de sangrar e comprometer permanentemente os tímpanos. Talvez o próprio Conorihi expulse-os dali, para não ser acessado por nós, moradores de Manguezal, e talvez nunca descobriremos o que de tão horripilante acontece com esses garotos a ponto de ficarem com aquela aparência tão aterrorizante. Só nos resta especular e torcer que nenhum de nós ou nossos filhos sejamos conduzidos a esse destino.


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