terça-feira, 11 de agosto de 2009

A queda





Aproximei-me do precipício e me joguei. Aproximei-me e mergulhei como se houvesse água para amortecer a queda. Creio que retornar ao topo é árduo, mas retornar é sempre necessário. Crê-se que se jogar em busca de água e colidir com as pedras é uma morte certa. Parte de si morre, parte de si fica. O que realmente nos destrói é encarar o estrago de frente, o que fica depois da queda, esperar que o tempo cure as feridas. Porém o corpo se deforma, as cicatrizes às vezes se abrem, elas sempre ficam, olhamos e elas estão sempre lá, nos encarando, nos deformando. Passamos por plásticas, tomamos remédios, maquiamos, e lá está, nos encarando de volta.

Aproximei-me do precipício e me joguei. Esperei poder voar, talvez. A minha alma ficou presa ao meu corpo, é pequena demais pra buscar outros mundos. O que foi embora é racionalidade. Me joguei, subi a montanha e me joguei novamente. Procurei encontrar espaços em minha mente pra entender a queda. Me perdi na busca. Fragmentei-me. Procuro então me envenenar com lembranças, criar novas histórias, procuro enfeitar a face do passado. Não me trazem respostas, não me trazem dor, não me trazem esperança, não trazem nada. Anestesiei-me com a queda. Não tenho o órgão pulsante. Não tenho ar pra me fazer soluçar. Não tenho sangue pra me fazer ferver. Não tenho. Tenho apenas perguntas. Tenho a espera do amanhã, mas ele me trai, ele me arranca o sentimento de perigo, ele me atrai novamente para a beira do abismo. Eu procuro cair de novo, procuro a água para mergulhar o meu corpo, o céu para flutuar a minha alma como Ismália, inalcançando o mundo.

Aproximei-me do precipício e me joguei. Não haviam mãos para me carregar quando cheguei ao chão. Estavam ocupadas demais com as suas próprias quedas, correram para os seus lares e me traíram as promessas. E enquanto eu acreditava valer a pena cair de novo, as mãos me avisaram que não valia a pena esperar eu alcançar o chão. Já estava danificada. Já conhecia o caminho de volta. Esqueceram-se que chegar ao topo novamente é árduo e me deixaram cair, me observando de longe, para não terem as suas mãos sujas de sangue. Eu que me joguei, as mãos estão limpas. Me fizeram crer que eu não estava sozinha. Sozinha estou. Essa foi a minha queda, de mais ninguém. É mais fácil fechar os olhos e dormir quando as mãos estão limpas. Por isso jogaram fora, desapareceram. Eu lidarei com a desfiguração. Eu lidarei com as distorções. Eu lidarei com a loucura. Não há sangue em outras mãos além das minhas. Assim me fazem crer, pra se absterem da culpa. E isso funciona pra eles, funciona pra todos, funciona pra mim, mentiras contadas várias vezes, mentiras-verdades, verdades. Está tudo por dentro, ninguém precisa ver, ninguém lida com isso. A queda é interna, a dor é interna. Pertence a mim. Pertence a minha mão suja. E então sorrimos e fingimos que ela não aconteceu. Um dia tudo será esquecimento, até as palavras. Esse código, eu mesma.

Priscila de Athaides - 11/08/2009


3 comentários:

Anônimo disse...

The Fool's Leap!

Algo, de Nada!

É assim que tudo começa, de bom ou ruim.

O legal é não tentar voltar e subir a montanha, e sim nadar pra outro lado. A montanha de lá pode até ser pior às vezes, mas pelo menos é diferente =)

Dianna Montenegro disse...

Há momentos em que tentamos nos enganar, nos convencer de que a queda é apenas um meio, que o que nos motiva é a esperança. Mas, no fundo, a queda é o fim, e não apenas um meio.

É a adrenalina em si que nos atrai. É a necessidade de sentir algo novamente, para o que tantas quedas com propósito nos anestesiaram. É a necessidade de insistir mesmo sabendo que o fracasso é iminente. É a tal história de que somos brasileiros e não desistimos nunca.

Às vezes, cair é bom, mesmo quando a água que poderia ter lá embaixo nos esperando já secou. Em algum momento, lá embaixo não estarão as pedras que nos dilaceram, mas o chão duro da realidade. Aí a gente acorda. E parte para outras montanhas, essas sim mais interessantes, com novos desafios, que podem nos fazer de fato tornar a sentir e mudar nosso mundo pra sempre. De novo.

Acho que esse foi o texto seu que mais gostei de ler de todos os tempos, Pri. Está lindo demais!

Priscila de Athaides Ribeiro disse...

Nossa, meu Deus! Me arrepiei com os comentários!