segunda-feira, 20 de junho de 2022

Reflexões não solicitadas - Abismo

 


Parte II

Há um tempo tive um vislumbre do que nosso futuro poderia ter sido. Te vi sentado na mesa da sua sala, lendo um livro e usando óculos, você um pouco mais velho e os seus cabelos um pouco mais grisalhos e curtos, você estava pelado, tomando um pouco de café e comendo uma fatia de pão amanteigado. Os aromas me tomavam o olfato do café recém feito e da manteiga derretendo no pão ainda quente. E você imerso na leitura, percebeu que eu me aproximava para me juntar a você, então me olhou de forma severa e sorriu.

Eu então me sentei à mesa e te encarei apaixonada, observando você terminar um trecho do livro. Você o fechou e repousou-o sobre a mesa. Conversávamos em meio a mordidas e goles, debatendo, gargalhando. Uma felicidade simplista que nos parecia suficiente.

Me vi sentada em sua cama folheando um livro enquanto você mexia no computador, ouvindo uma playlist mista com músicas minhas e suas - agora nossas. O sol adentrava a sua janela e você logo se juntava a mim e tomava o meu livro das minhas mãos, colocando-o em sua escrivaninha e me beijava enquanto suas mãos passeavam em meu corpo, e fazíamos amor.

Vi a gente se mudando para um bairro pacato por aqui. Uma casa murada como você queria. Um espaço nosso. Guardávamos os móveis dentro da casa, tirando juntos do caminhão de mudanças. Era uma casa amarela com um pequeno jardim na frente com flores vermelhas, o muro era acinzentado com sulcos pintados de vermelho terra. Me lembro de te ver carregando uma caixa recém tirada do caminhão e olhando para mim sorrindo, empolgado com essa nova empreitada, me beijando rapidamente no caminho até a porta de entrada.

Minhas visões suas agora são sempre desse homem isolado, inalcançável, escondido em um abismo rochoso, rancoroso, guardando ressentimentos envolta de orgulhos, se privando de fazer o que quer por teimosia, ambíguo em seus sentimentos sem entender o que sente, fadado ao esquecimento e irrelevância. Você me dizendo em sonhos que quer estar comigo, apenas não quer estar aqui agora. E eu tentando reconquistar o meu lugar em seus braços, incapaz de seguir em frente, ainda presa em sua frequência, descendo nesse abismo tentando te resgatar de alguma forma.

Te vejo sempre frio e perdido em sua mente cravada de espadas que te fazem estar pregado ao chão, sem conseguir tirar essa venda que você colocou em seus olhos. Mas estar nesse estado é uma escolha sua e tirar essas espadas das suas costas é uma tarefa árdua, mas aliviante, se assim você o quiser.

Está na hora de você embainhar as espadas e ligar a tocha para te guiar para fora do abismo. Beber do cálice a força vital que te fará ver além dessa névoa em que você se esconde, ouvir o que os seus sentimentos te dizem com clareza e escolher o caminho que te tirará essa sensação de apatia e ressentimento.

Espero não te ver mais sentado empunhando uma espada, preso em sua mente afiada, se perdendo em seus pensamentos analíticos e se esquecendo de saciar o seu corpo de água e fogo. Eu espero que você se permita e que o futuro que eu vislumbrei se concretize, pois o caminho que você escolheu é ainda confuso e estranho. Seu caminho, sua escolha, mas que não sei te dizer se te cravejará ao chão impossibilitando-o de vivenciar mudanças significativas, ou te tornará verdadeiramente livre de alguma convenção que te apavora, algum código de vivencia não-convencional que tem te trazido o que. Uma hora a serpente deverá morder o seu próprio rabo percorrendo a infinidade da predestinação. Se não nesta vida, nas outras por vir. Mas dessa forma apenas acumulamos carmas, deixamos de cumprir promessas, nos perdemos em propósitos vãos. Duas almas interligadas entre a bestialidade e o mítico, tendo o fio das nossas vidas tecidas na roca, na dança astral que nos revela quem somos e entrelaça nossos caminhos. Não há acasos, mas há escolhas. Velut luna. Decifra-me, ou te devoro!


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