Durante muito tempo, muitas das casas da pequena cidade de Manguezal eram feitas de madeira, mas aos poucos elas foram reconstruídas com tijolos e concreto. Muitos temem derrubar as árvores que ficam na mata perto dali. Poucas casas ainda são feitas de madeira, em especial as casas próximas ao mangue que são muito antigas e os familiares daquela região são muito pobres a ponto de não conseguirem reforma-las. Mas tem uma cabana, quase dentro da mata que envolve a cidade, que foi abandonada décadas atrás e continua lá, como um lembrete do que aconteceu em algum momento do século 19. A cabana hoje em dia tem uma coloração escura e assustadora. As suas paredes estão tomadas por musgo e um mofo de coloração muito escura e mal cheirosa, mas dizem que se você procurar bem, dá para perceber sangue espalhado pelas paredes. Ninguém quer morar naquela casa ou adquiri-la e creio que não tenha mais ninguém que poderia receber algum dinheiro por ela. A casa apenas está lá, sendo tomada pela destruição do tempo.
Existe um motivo para a casa estar abandonada. Não apenas ela é distante do restante da cidade e de difícil acesso, mas a família que ali morava foi acometida por muitas tragédias. Uma família composta por jovens pais e duas filhas gêmeas morava naquela casa. As meninas se chamavam Luara e Luana. Luara havia sido levada na noite de ano novo que passou no convento da cidade, na época cuidado por freiras. A segunda sobreviveu àquela noite para tempos depois testemunhar a morte dos pais acometidos por uma terrível cólera. Dizem que o pai ouviu o chamado do chalé escondido na mata que acoberta Manguezal e decidiu ignorar. Mas foi ele, e não Luana, que morrera daquela doença terrível, juntamente com a sua mãe. Talvez porque a mata tinha outros planos para ela.
Dizem que certa noite de lua cheia Luana, já uma jovem adulta, estava em casa quando ouviu um choro vindo da janela do seu quarto. Ela tinha acabado de perder os pais e vivia o trauma do desaparecimento da irmã, por isso se sentiu assombrada ao ouvir aquele choro tão familiar. Ao abrir a janela, viu a sua irmã, ainda com a aparência de criança, mas com olhos e cabelos brancos. Talvez ela estivesse ali para lamentar a morte dos pais. A menina entregou para a irmã um totem de madeira em forma de triângulo feito de gravetos da mata e disse que mais uma tragédia iria se abater em sua vida. E que aquele era o símbolo do que estava por vir.
No dia seguinte Luana encontrou um homem deitado em sua porta, completamente nu e muito ferido. Ela, com medo da situação, pegou a velha espingarda do pai e apontou para o rapaz. Ele acordou, ainda atordoado e muito fraco com as feridas que tinha pelo corpo e um machucado bem horrível na cabeça. Assim que a viu apontando a espingarda para ele, ele chorou copiosamente e pediu a sua ajuda, desmaiando novamente. A moça decidiu ajuda-lo.
O que se sabe dessa história é que a moça se apaixonou pelo forasteiro e tiveram sete filhos juntos. O homem de vez em quando sumia pela madrugada e retornava para o mesmo lugar que havia sido encontrado, sempre muito ferido e sem se lembrar do que havia acontecido. Sempre que ele sumia, histórias horríveis rondavam a região de uma criatura humanoide monstruosa coberta com a pele de onça pintada, com garras enormes afiadas e um rosto deformado, meio homem meio onça, e com dentes pontiagudos em uma boca assustadoramente grande, que atacava os desavisados que caminhavam pela cidade à noite, arrancando as suas entranhas e se alimentando delas. A mulher passou a viver desconfiada e com medo daquele homem que havia deixado fazer parte da sua vida, mas ele nunca a havia machucado. Ao nascer o sétimo filho do casal, o homem sumiu e nunca mais voltou. Deixou para trás, em cima do travesseiro dele, o mesmo símbolo que a irmã havia dado a ela no passado.
Em cidades do interior todos sabem sobre o que significa o sétimo filho. Aqui em Manguezal existem várias famílias com sete filhos, com histórias quase tão trágicas quanto as de Luana, mas dizem que tudo começou com ela. Quando o seu sétimo filho fez onze anos, alguns dos seus filhos já haviam tido destinos misteriosos. Luana teve dois filhos que desapareceram na noite de ano novo. O mais velho foi hipnotizado pelo canto do mar e teve um fim trágico. Apenas quatro dos seus filhos ainda moravam com ela e a mulher vivia a se lamentar pelas perdas que teve na vida, acometida por uma profunda depressão. Os moradores do local diziam que o homem por quem ela havia se apaixonado era na verdade uma criatura antiga que rondava a mata de Manguezal, um ser mutante meio homem e meio onça conhecido como Capiango, filho de uma das cinco bruxas que foram exiladas naquela mata e que dizem ter invocado uma divindade ainda mais antiga e poderosa, chamada Conorihi. A criatura antiga da mata havia conseguido se tornar brevemente humano e se disfarçou entre os moradores para amaldiçoa-los, começando com ela, a filha de um homem que ignorou o chamado das cinco.
Certa noite de lua cheia algo horripilante aconteceu com os filhos de Luana. Ela foi acordada com os gritos deles. Ao correr até o quarto onde ouvira o grito, o mesmo quarto onde antes dormiam ela e a irmã, avistou a silhueta de uma figura disforme e enorme, com pelo por todo o corpo parecendo o de uma onça pintada e uma boca que se assemelhava a um focinho com dentes enormes, além de garras extremamente afiadas saindo das pontas dos seus dedos. O seu primeiro instinto foi pegar a espingarda do pai e atirar na criatura. Mas ao olhar mais de perto, percebeu que o rosto daquela figura horripilante a lembrava o do seu filho mais novo. A mulher entrou em choque.
O monstro atacou uma das crianças e com as unhas afiadas começou a rasga-la e comer as suas entranhas. A mulher não hesitou mais e atirou naquele monstro. Mas a bala malmente parecia machucá-lo. Ele então partiu para cima da segunda criança e mais uma vez a rasgou e comeu as suas entranhas. O menino mais velho correu e pegou uma madeira que estava do lado de fora da casa. Começou a bater na criatura, que passou a soltar alguns grunhidos. Então o monstro partiu para cima do garoto e mordeu a sua cara, deixando o crânio exposto. O menino não morreu de imediato, ficou um tempo no chão se debatendo em agonia tentando puxar o ar que não parecia adentrar os seus pulmões. A mulher se lembrou dos totens deixados pela sua irmã e pelo seu marido, decidindo pegar um deles em se quarto e mostrar para aquela criatura, que imediatamente desmaiou e aos poucos voltou a ser a criança que a mulher tanto amava.
No dia seguinte um dos moradores decidiu investigar o que seriam os gritos que tanto ouviu naquela noite vindos da cabana próximo à mata, e viu uma criança toda coberta de sangue e machucados acordando. Próximo a ela estavam os corpos dilacerados dos seus irmãos. Sem entender o que havia acontecido, a criança começou a chorar desesperadamente e a gritar pela mãe. O menino e o homem foram até o quarto da mulher e perceberam que ela havia atirado em sua cabeça. Em uma de suas mãos estava uma carta relatando o que havia acontecido. Essa carta está em exibição no museu que fica dentro do farol da cidade. O homem pegou a carta da mão da mulher e começou a ler em voz alta. O menino, ao ouvir o que a mãe escrevera, ficou atordoado e correu para a mata, sem dar chances para que o homem pudesse processar o que acabara de ler. O homem viu a criança ser levada por uma menina de cabelos e olhos brancos. Ela o guiou até a mata e eles nunca mais foram vistos. Dizem que um dos rostos encravados nas árvores do local é o do menino. Outros dizem que ao adentrar muito fundo na mata, pode-se ver uma criatura mutante que se assemelha a uma onça, mas que se move como um homem, e que ataca os andarilhos, rasgando as suas barrigas e se alimentando das suas entranhas. Outras famílias tentaram morar naquele lugar, mas dizem ser visitadas pela figura fantasmagórica de Luara, que acreditam ainda visitar o local e chorar pelos seus familiares mortos.
Após o que aconteceu com Luana, todos as famílias perdem o sétimo filho de alguma forma em Manguezal, ao fazerem 11 anos de idade. Alguns somem ao entrar na mata, alguns se afogam no mar, alguns desaparecem na noite de ano novo e alguns são levados por Capiango para serem alimentados pelas árvores que ficam no miolo da mata de Manguezal. Algumas famílias relatam que os próprios sétimos filhos se transformam nessa figura mitológica e após virarem esse monstro metamorfo, se afugentam para a mata para nunca mais voltarem.
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