Uma das principais atividades econômicas da pequena cidade costeira de Manguezal, localizada no interior do Maranhão, é a pesca no mangue. Não a toa a cidade leva esse nome. Muitas famílias vivem exclusivamente do que pescam ou catam no manguezal. E a culinária da cidade é feita quase que exclusivamente pelas iguarias encontradas na lama do mangue e das pescas do mar. Apesar do local oferecer uma grande abundância de peixes, caranguejos e lambretas, é comum encontrar restos de animais como galinha, porco ou boi no meio da lama, ainda se mexendo. Isso não assusta os moradores. Afinal de contas, todos da cidade participam do festival do mangue, onde cada família entrega um desses animais ao local, que se alimenta dessas oferendas.
Quem é de fora da cidade pode estranhar esse festival peculiar de Manguezal, mas não o fazemos sem um propósito. O mangue precisa ser alimentado, de outra forma a doença do mangue poderá nos pegar e ninguém quer ser contaminado, pois é uma morte horrível. Há alguns séculos atrás existia uma família que vivia próxima da região e a filha mais velha sempre trabalhava arduamente no meio da lama para catar os caranguejos e lambretas. Um determinado dia uma figura humanoide coberta de lama se levantou do mangue e caminhou até a moça, a abraçando. A mulher se debatia para que aquele ser a largasse, mas ele a cobriu completamente de lama e a largou, retornando para o mangue, se derretendo de volta. A princípio ela ficou apenas coberta com aquela lama mal cheirosa do mangue e correu para casa, avisando que havia sido atacada por alguém que se escondeu entre a lama do manguezal.
O pai da moça correu até o local carregando uma espingarda e começou a atirar em direção à lama, mas nada viu ou ouviu. Ao se aproximar, percebeu que onde havia atirado, sangrava. Ele então se adentrou no manguezal a procura de alguém escondido ali, mas nada encontrou. Saiu então coberto de lama e sangue e retornou para casa.
A moça decidira tomar um banho e se limpar de toda aquela lama. Para a sua surpresa, uma parte da sua pele, em seus ombros, começou a se derreter com a água e ela passou a sentir uma coceira absurda na região, que foi se espalhando por todo o corpo, além de uma dor insuportável onde a pele do seu ombro parecia derreter. Quando o pai chegou dos manguezais, viu a menina se coçando loucamente, com as pontas dos dedos cobertas com a própria pele. Boa parte da pele do seu ombro estava descolada, se pendurando no tórax. Já era possível ver parte do seu osso à mostra. Ele a levou para o curandeiro da cidade, remanescente da tribo que ali vivia, e que relatou nunca ter visto ou ouvido falar de algo assim. O curandeiro a medicou com algumas ervas do local para que pudesse dormir e anestesiar a profunda dor e coceira que ela sentia.
Pela manhã, o pai foi checar como a menina estava e viu que a pele dela havia se grudado nos lençóis e a menina acordara gritando, tomada por uma dor insuportável enquanto todo o seu corpo derretia, expondo os músculos e ossos em várias partes. Ela começou a gritar implorando que o pai a levasse até o manguezal, pois o local a chamava. Ele a levou imediatamente para lá. Ao chegar naquele lugar, a lama do mangue começou a subir pelo corpo da moça, tomando-a por completo aos poucos, adentrado as suas feridas e a absorvendo lentamente enquanto a menina soltava gritos agoniantes. O pai pôde observar a sua filha sendo deformada e derretida por essa lama, que parecia a digerir satisfatoriamente. Nos dias que se seguiram, as famílias que trabalhavam no local ainda se deparavam com alguma parte do seu corpo que parecia não ter sido digerida completamente. As vezes encontravam um pedaço de osso, as vezes uma parte do pé ou da mão, encontraram a mandíbula dela sem os dentes presentes e o que mais assustou as pessoas do local foi terem encontrado um olho, que ainda parecia ter vida. Dizem que se você prestar bastante atenção poderá perceber o mangue respirando.
Um ano após a morte da menina, o pai levou até o local onde ela havia sido atacada um dos seus porcos, oferecendo-o a aquele ser hediondo que a filha disse ter visto. Assistiu atônito o pobre animal sendo digerido pela lama assim como a filha foi outrora. A partir daquele dia, no dia de São João, data da morte da menina, todos da cidade passaram a levar os seus sacrifícios. Nem todos os animais são engolidos, mas podemos ver esse processo acontecer com algumas das oferendas. Todo ano participo do festival, que acontece no período, e vejo os animais sendo digeridos pela lama lentamente, agonizando com a dor da pele derretendo e se tornando um com o mangue. Se a lama não estiver satisfeita com as oferendas, a figura humanoide feita de lama pode ir atrás de um dos moradores para se alimentar. De tempos em tempos é possível se deparar com algumas partes humanas ali e as vezes essas partes ainda se mexem, como se continuassem vivendo. Algumas pessoas que moram na região dizem ouvir o grito dos animais durante toda a noite após o festival dos sacrifícios, ainda sendo digeridos pela lama. O irônico é que nos alimentamos daquilo que o mangue nos fornece e o mangue as vezes se alimenta de nós e dos nossos animais. Mas os caranguejos daqui são os maiores e mais suculentos da região e famosos em todo o estado.
Os animais que não são digeridos pela lama são assados pela população em uma grande fogueira enquanto festejamos o São João com um grande banquete em comemoração da aceitação das oferendas pelo mangue. Sabemos que a lama não irá atrás de nenhum de nós após ser bem alimentada, mas as vezes a lama sente fome fora de época e um de nós nos tornamos vítima dela, apesar de ser raro disso acontecer. Acredita-se que a doença do mangue é um dos filhos das cinco bruxas exiladas de um convento hoje abandonado e que segundo as lendas, moram em um chalé no meio da mata que cobre Manguezal. O ser da lama é a cria de um pacto feito entre as cinco mulheres e uma entidade conhecida como Conorihi, que regia o local e era adorado pelos nativos que moravam em aldeias onde hoje se localiza a cidade, antes da invasão portuguesa e da chegada das missões. Transformado em demônio pelos católicos, Conorihi até hoje se vinga dos descendentes dos invasores que destruíram o seu povo e os seus costumes. De acordo com as lendas, a divindade mora em uma gruta próxima a uma cachoeira do rio Pupti, localizado no meio da mata, e que essa gruta se estende por todo o subterrâneo da cidade.
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