segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Lendas de Manguezal - Parte V - A Cachoeira

 As matas ao redor da pequena cidade de Manguezal são de uma beleza ímpar. A riqueza da sua fauna e flora é de tirar o fôlego. Mas os terrores que as cercam também podem te fazer ter uma experiência digna dos seus piores pesadelos. Sabe-se que as matas são acometidas por uma maldição que é tão antiga quanto à cidade. O convento da companhia de Jesus, agora abandonado, pode ter trazido algum desenvolvimento para essa região, mas as maldições que o convento sofreu se sobrepõem a qualquer coisa boa que esse lugar pode ter trazido para a cidade. Manguezal não é um bom lugar para se ter filhos, mas como a cidade é muito católica e planejamento familiar não faz parte da rotina de lá, algumas famílias chegam a ter mais de 10 filhos e é comum algumas dessas crianças terem algum fim misterioso ou arrepiante. Todas as famílias tem alguma história trágica.

Se você estiver no meio da mata que rodeia Manguezal, reze para não se deparar com um chalé aparentemente abandonado. A visão desse simplório lugar pode ser a última coisa que uma pessoa verá na vida e ainda assim não a mais assustadora que encontrará ali, pois segundo as lendas do local, o miolo da mata é de grande perigo e horror. Caso alguém saia vivo de lá, não será mais o mesmo. Na mata de Manguezal, não muito longe da cidade, há um rio que deságua no mar formando o mangue da região, chamado Pupti. Neste rio há uma cachoeira com uma gruta atrás da sua queda d'água. Alguns turistas desavisados que acamparam perto das suas margens e se aventuram pela gruta, que ainda não foi mapeada, relatam terem visto algo horrível no lugar. Há quem diga que ali existem vários estalactites e estalagmites, de uma beleza estonteante, e que quem for corajoso para ir mais adentro do local, pode encontrar pedras preciosas e muito ouro. É quase um achado de tirar o fôlego para os andarilhos que descobrem a região. Mas como tudo em Manguezal, há algo de estranho naquele local e muitos que se aventuram explorar o espaço, fogem de lá aterrorizados. Ao menos os que têm sorte de sobreviver.

Alguns moradores dizem já ter encontrado uma mulher de cabelos negros se banhando nua nas águas rio Pupti. Uma mulher de uma beleza sem tamanho, com olhos de um tom esverdeado como as águas do local, estonteantemente brilhantes. Não se sabe bem ao certo quem ela seja, mas sabe-se que, caso você a encontre, não deve se aproximar. De preferência, fuja dali rapidamente antes de ser notado. Nada de bom saíra desse encontro com a mulher misteriosa da cachoeira. Alguns dizem que ela mora na gruta atrás da queda d'água e que, em dias de lua nova, ruídos horríveis saem de lá. Alguns moradores dizem ter visto uma criatura monstruosa com parte do seu corpo gigantesco do lado de fora da gruta. Tentáculos amorfos no lugar do que deveriam ser braços, um rosto gigante e deformado, com dentes enormes e pontiagudos em uma boca molenga, que parece ter sido derretida, olhos de peixe imponentes e negros e dois grandes furos no meio da cara, no que parece ser o nariz da criatura. Há quem diga que a criatura monstruosa é a mulher que se metamorfoseia ao efeito da lua nova. Há quem diga que a mulher protege o nosso mundo desse monstro, conhecido como a divindade Conorihi, tido como um demônio para alguns. Acredita-se que a mulher é filha desse ser que reside na gruta. Há quem diga que a gruta é na verdade uma porta para o inferno e caso alguém seja levado para lá ou se adentre muito profundamente no local, chegará no mar de fogo infernal. Nem todos acreditam na existência da mulher da cachoeira, mas eu sim. E explicarei porquê.

Certa vez estava brincando na cachoeira com cinco dos meus amigos: Jaciara, Irani, Cauã, Joaquim e Santiago. Costumávamos ir até a cachoeira para nos desafiar a quem pulava do local mais alto e as vezes brincávamos de esconde-esconde. A história que contarei se passou quando eu deveria ter ainda uns dez anos de idade. Decidimos brincar de esconde-esconde no local, mesmo sabendo que seria noite de lua nova, mas adorávamos brincar ali e nada de ruim havia acontecido até aquele momento. Naquele dia, após nadarmos no rio por longas horas, decidimos brincar de esconde-esconde. A noite estava se aproximando lentamente, mas não queríamos ir embora. Santiago foi o escolhido para nos procurar e me escondi na mata, em um local que poderia ver onde ele estava. O que vi me atormenta até hoje. Jaciara decidiu se esconder atrás da cachoeira, dentro da gruta. Pude notar o seu rostinho olhando para Santiago, na expectativa que ele não a percebesse. Então vi que algo a puxou para dentro do local e não a vi mais. Ao invés disso, vi uma mulher de longos cabelos negros sair da gruta, completamente nua. A sua beleza era hipnotizante. Vi-la pular no rio graciosamente. O barulho chamou a atenção de Santiago, que logo percebeu a presença da mulher e ficou paralisado, se tremendo todo.

Todos nós sabíamos da história da mulher que morava naquela gruta, mesmo assim nos arriscávamos a ir na cachoeira pela beleza do local e pelo sossego que o rio Pupti passava. Nós seis também íamos para lá pela diversão e aventuras que sempre tínhamos. Frequentávamos o lugar desde os nossos oito anos de idade e aquela era a primeira vez que algo estranho acontecia. O menino encarava a mulher nadando a até a beira do rio sair das águas, indo em direção a ele. Pude ouvi-la dizer: 'O que faz aqui, pequenino? Estás perdido?'. Ele a encarou e sem dizer uma palavra balançou a cabeça negativamente. Ela continuou: 'Não sabes que não podes vir aqui, pequenino? Ainda mais nesta noite de lua nova. Mas não te preocupes. Estou muito feliz de te encontrar aqui.'. Ela então pegou a mão de Santiago e começou a acariciar o próprio rosto. De repente, ela mordeu a mão do menino, a arrancando violentamente. Ouvi o grito de dor que saiu da boca dele e nesse momento a mulher olhou diretamente para mim, pude ver os seus olhos verdes da cor do rio brilharem. Ouvi um dos meninos gritarem: 'Corre, galera!'. E pude ouvir as outras crianças saindo apressadamente dos seus esconderijos, correndo em direção à cidade. Fiz o mesmo.

Ao chegar em Manguezal, fui diretamente aos meus pais e contei o que tinha acabado de acontecer. O resto da história virou boato pela cidade. Aparentemente, alguns dos adultos foram até o local com espingardas e o que viram os deixaram perplexos. Primeiro eles notaram que a água próxima da cachoeira tinha uma enorme poça de sangue e ao chegarem mais perto, viram a cabeça de Santiago na entrada da gruta. O rosto do menino era de puro horror, mas estava sem os olhos e a sua língua havia sido arrancada. Não encontraram nenhum vestígio de Jaciara. Os moradores então interditaram a região e por muito tempo quem ia até o local encontrava partes de corpos que acredita-se ser das duas crianças que se atreveram a brincar naquele local. De tempos em tempos ouvimos o relato de transeuntes que chegam na cidade dizendo que algum companheiro de viagem foi levado por essa mulher para dentro da gruta. Ninguém se atreve a ir checar.

Irani ainda está na cidade, hoje casada e mãe de duas meninas gêmeas de três anos. Ela teme o que será das filhas dela. Ouvi dizer que está grávida de 5 meses. Cauã virou um pescador na região e, segundo o relato dos colegas pescadores, acabou pescando um peixe típico da região de cauda que representa mau agouro, desaparecendo logo em seguida. Todos sabem que aquele não é um peixe qualquer e que quem o pegar, não terá um bom destino. Joaquim era o sétimo filho de uma grande família com mais oito irmãos e irmãs. Dois dos seus irmãos já tinham desaparecido quando essa história da cachoeira aconteceu, mas quando Joaquim fez 11 anos, em uma noite de lua cheia, uma de suas irmãs foi morta violentamente por uma criatura meio homem e meio onça e o menino fugiu para as matas para nunca mais ser visto. Dizem que ele era a própria criatura e agora vaga pelas matas como essa mutação monstruosa. Talvez as próprias árvores tenham dado um fim a ele.

Eu, Moacir, aprendi com aquela história a nunca ignorar as lendas que rodeiam a pequena cidade de Manguezal, pois elas sempre se provam reais. Não me neguei a ir ao convento quando completei 11 anos, na noite de ano novo. Sempre ofereço, com a minha família, um animal para o mangue. Assim que os meus estudos na UFMA terminarem, retornarei para a cidade e darei aula na pequena escola da região para as crianças dali, e quem sabe compartilhar com elas as histórias sobre o local onde elas nasceram e moram. Jamais me arriscarei a andar pelas matas que cercam a cidade e nunca me atreverei a derrubar uma árvore dali, em especial as que tiverem rostos cravados em seus caules. Não pretendo pescar no mar de Manguezal e nem ambiciono pegar o peixe de cauda longa. Mas se um dia ouvir o chamado das cinco bruxas, irei correndo até a chalé escondida naquelas matas. E um dia sei que me casarei com alguma mulher da região e teremos muitos filhos, mas que nem todos sobreviverão. Eu reconheço que até o momento dei sorte, até porque poderia ter sido eu a morrer naquele dia. Por isso passei a respeitar as histórias aterrorizantes que já ouvi sobre Manguezal e que li no museu do farol. A minha cidade com histórias tão trágicas e medonhas, mas onde eu nasci, cresci e é onde um dia morrerei.


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