Manguezal é uma cidade pequena demais para constar nos mapas. Não adianta procurá-lo no google maps, você só verá mato. E é bom que seja assim. Aqui vivemos da pesca, da caça e do mangue. Muitas famílias têm pequenas hortas e costumamos nos ajudar, trocar alimentos que plantamos, que pescamos e que caçamos. Vivemos bem assim, na medida do possível. Vendemos muita coisa para as cidades vizinhas pequenas como a nossa e assim fazemos a economia da cidade girar. Há uma escola municipal na cidade que vai até o 5º ano e precisamos ir para uma cidade maior, há uns 100 quilômetros de distância, se quisermos terminar os estudos. Se desejamos ir para uma faculdade, precisamos nos mudar para São Luís, a capital de Maranhão, ou para outro estado. E para os que se aventuram em uma vida longe de Manguezal, temos de retornar eventualmente, pois os que não retornam após onze anos, ou enlouquecem ou se matam. Os relatos é que eles são visitados em sonhos pela divindade que rege a cidade, conhecida como o demônio Conorihi, e em seguida passam a sofrer alucinações com os cinco filhos das cincos bruxas da mata, também parte das lendas do local. As pessoas que por algum motivo se mudam para Manguezal, não ficam. A cidade não gosta de forasteiros, os forasteiros temem a cidade.
Existem várias histórias que corroboram para isso. Dizem que a cidade foi amaldiçoada em vários momentos e uma dessas maldições aconteceu no farol que fica a poucos metros da costa, em uma minúscula ilha rochosa. Dizem que no século 19 uma freira chamada Maria Aparecida se envolveu com um padre, cujo nome foi apagado da história, e engravidou. O padre se enforcou no farol e a mulher foi aprisionada no local, cuidada pelas outras freiras da região. Segundo relatos, as freiras torturaram-na a deixando com fome, sede e privação de sono, amarrando-a em uma cama durante toda a gestação, sem que ela pudesse ir ao banheiro, sentada em seus próprios excrementos. O bebê nasceu no farol e por muitos dias podia-se ouvir o choro da criança, que logo se calou. Podia-se ouvir por dias logo após o sumiço do bebê, Segundo relatos, os gritos da freira sobre o seu bebê que fora tomado de seus braços . Após algum tempo a mulher também se calou. Há quem diga que ela se jogou ao mar após ficar aprisionada no local por 11 anos e há quem diga que ela morou a vida toda no farol, e que os seus ossos ainda estão por lá, em um túnel secreto que liga o local ao convento que està localizado na cidade de Manguezal. Segundo uma das versões dessa lenda, o bebê foi levado por cinco antigas freiras que foram expulsas do convento séculos antes e passaram a morar em um chalé no meio do mato, também conhecidas entre os habitantes como as cinco bruxas. Há relatos que a criança foi jogada ao mar e foi absorvida por uma criatura marinha adormecida e enraivada que um dia irá se levantar, criando um tsunami que afundará a cidade.
Tem um velho convento na cidade, que dizem também ser amaldiçoado e hoje está abandonado. O convento fica próximo ao mar e era tarefa das freiras cuidar do farol. Hoje o farol é um patrimônio da cidade e virou um museu com pinturas da época da colonização, imagens de santos, diários do convento, materiais indígenas e até as roupas usadas pelos padres, freiras, nativos e dos povos portugueses que aqui embarcaram. Lá também está exibido os diários das freiras que cuidaram de Maria Aparecida. Segundo os escritos, a mulher havia sido possuída por um mau que não as deixavam se aproximar. Há quem diga que a freira aprisionada também escrevia um diário sobre o seu amor proibido, a provação que teve de passar, o descaso sofrido pelas suas companheiras e o destino do seu filho. Mas o diário nunca foi encontrado nunca foi encontrado.
Nem tudo o que relatarei será encontrado em exposição no farol. Há quem diga que o convento foi corrompido de dentro para fora, que as freiras tinham um pacto com o demônio que vive debaixo da cidade e que os abusos que aconteciam ali alimentavam essa força, tornando-a maligna, contaminando todos os locais da cidade. Muitas das mulheres foram forçadas a se converter contra as suas próprias crenças e costumes, incluindo algumas índias que adoravam a entidade Conorihi, ou algumas mulheres condenadas por bruxaria trazidas de Portugal e que acredita-se que tinham conhecimentos ocultistas e que perceberam o poder que o local tem. Esse encontro dos dois mundos se sincretizou fortalecendo o monstro que vive na cidade, contagiando-o com um poder destruidor motivado pelo ódio daquilo que havia sido feito com os nativos.
O convento passou a fazer parte de um rito da cidade, com desdobramentos imprevisíveis e traumatizantes. Todas as crianças que fazem 11 anos têm de passar o ano novo no local. E nesta noite muitas coisas podem acontecer a elas. Há relatos de crianças que subiram no telhado e se jogaram ao mar, crianças que desapareceram, crianças que ficaram catatônicas. A maioria passa a noite no local e não presencia nada de estranho, porém esse momento é temido por todos na cidade, e sabe-se bem que aqueles que não participam, são acometidos por algo ainda mais horrível. Eu também tive de passar a noite de ano novo no convento abandonado quando completei 11 anos. Eu nada vi ou ouvi. Passei a noite inteira com os olhos fechados, metade do tempo em pânico e a outra metade dormindo pesadamente. Apesar do convento estar abandonado, a cidade procura manter os quartos arrumados e confortáveis para receberem as crianças. Recebemos água e mantimentos dos adultos, mas alguns desses mantimentos amanhecem intocados por causa do pavor que sentimos. Aqui as famílias tem vários filhos. É normal uma mesma família ter mais de 12 filhos, apesar de nem todos sobreviverem e alguns sumirem. Duas meninas gêmeas que entraram comigo desapareceram durante a noite e um dos meninos ficou em estado catatônico. Ninguém sabe ou se atreve a dizer o que aconteceu.
Sobre as crianças que não passam a noite no convento, logo os pais percebem que foi uma escolha errônea e se arrependem amargamente. Afinal, o que poderia ser tão terrível a ponto de fazer os pais largarem os seus filhos em um convento abandonado em uma noite em que crianças podem morrer, desaparecer ou ficarem catatônicas? Quem desafiou essa tradição mantendo os filhos em casa, condenam essa criança um destino trágico e curto. As crianças que não vão até o convento amanhecem mortas. Os pais que passaram por isso relatam que as crianças ficam pálidas, com as pálpebras abertas e sem olhos e a boca escancarada. Elas aparentam estar apavoradas. Mas isso não é o mais sinistro. Todas elas têm a língua arrancada e as entranhas espalhadas pelo quarto. Não adianta tentar passar a noite em claro, a criança sempre aparecerá morta no dia seguinte. Dizem que a brisa do ano novo vem com um sonífero no ar que faz com que todos adormeçam profundamente, exceto aqueles que ficam acordados e testemunham o que quer que a brisa queira que eles vejam. É como se algo estivesse punindo a família que não seguir as regras.
O que é contado de geração para geração é que Maria Aparecida amaldiçoou a cidade e nunca mais foi vista. Após 11 anos de silêncio, ela se aproximou na janela e jurou que a cidade iria perder os seus filhos na noite de renovação, como vingança pelos 11 anos de aprisionamento sem o seu filho. Em seguida, ela desapareceu. Na primeira noite de ano novo após o sumiço de Maria Aparecida, as freiras acolheram todas as crianças no convento e as mantiveram protegidas. Os que não passaram a noite no local, desapareceram ou amanheceram mortas. Nos anos seguintes, mesmo com a proteção das freiras, ao menos uma criança desaparecia no convento. Acredita-se que as freiras e a mulher fizeram um acordo para que ela ficasse com apenas uma criança e por isso ao menos uma criança sempre desaparece. Quando mais de uma criança some, sempre uma menina, acredita-se que outra coisa acontece com ela, mas deixarei para contar sobre isso em outro momento.
Dizem haver um porão no convento que só as freiras sabiam onde fica e que leva a um túnel ligando o convento ao farol. Algumas pessoas acreditam que as crianças que sumiram foram levadas para esse túnel e as suas almas estão presas ali, cuidadas por Maria Aparecida. Alguns ainda dizem que as crianças levadas servem de oferenda para o monstro marinho que mora no fundo do oceano, próximo ao litoral, e que a freira do farol é a guardiã desse monstro. Acredita-se que as crianças em estado catatônico viram a figura fantasmagórica da freira levando os desaparecidos com ela e foram enfeitiçados por testemunharem, mas isso são apenas suposições. Acredita-se ainda que as crianças que testemunharam o que acontece na noite de ano novo sabem onde fica a entrada do túnel, por isso estão presas em seus próprios corpos, incapacitadas de falarem o que viram, pois esse túnel também leva a Conorihi.
Se há alguma passagem secreta no convento que leve até o farol, não saberia dizer. Já me aventurei nesses locais inúmeras vezes e nunca vi nada. E talvez não cabe a mim encontrar esse túnel. Talvez seja só uma lenda interiorana que passou a fazer parte do nosso cotidiano e por isso apenas passamos a história adiante, convencendo-nos a manter as tradições da cidade, com medo do que possa acontecer se as descumprirmos. Posso não ter presenciado nada de estranho naquela noite de ano novo, mas essa não é a única lenda de Manguezal. Pude presenciar algumas coisas bizarras que aconteceram por lá e sei que há algo de estranho rondando a minha pequena cidade costeira e é possível que ao retornar, presencie mais coisas, talvez os meus filhos desapareçam no convento, nas matas, na cachoeira, no mangue, no mar. Por isso ninguém de fora consegue ficar aqui, e muitos forasteiros que por aqui ficam, são logo enterrados na terra fértil da cidade ou ficam perdidos entre as árvores da mata que cerca a cidade e que dizem estar viva.
O convento foi desativado ainda no início do século 20, pois não fazia mais sentido manter aberto um local que foi palco de tanto sofrimento e que foi se esvaziando com o passar do tempo, em especial após o sumiço de Maria Aparecida e o árduo preço que as freiras passaram a pagar, segundo relatos delas, sendo as vezes visitadas pela mulher do farol em sonhos, sofrendo de terrores noturnos, sonambulismo e alucinações, as vezes subindo no telhado do convento e se jogando de lá. Já não haviam mulheres sendo enviadas para o local a fim de estarem mais perto de Deus, afinal de contas como conseguir tal feito sendo assombradas pelas terríveis histórias e vivendo em constante medo? Há uma igreja ao lado do convento que continua funcionando e serve de refúgio para as mentes mais assustadas da cidade. O povo de Manguezal é muito devoto e acreditam que ali seja um santuário para os horrores acometidos pela cidade. Não entendo como o local ajuda, já que todos sofremos o mesmo destino blasfêmico que assombra o local, de uma forma ou de outra. Talvez a fé seja uma forma do povo manter a sua sanidade e diminuir a dor do luto, tão presente em nossas vidas. Respeito a dor de cada um deles e o que fazem para tentar supera-las, afinal de contas é uma dor que compartilhamos e convivemos em nossas rotinas.
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