terça-feira, 2 de junho de 2020

Conto - O relógio

     
Ela acordou e percebeu que tinha algo estranho. Ainda estava em seu quarto, mas ele estava diferente. Os seus lençóis já não exalavam ao cheiro fresco do amaciante que ela adorava. Agora cheiravam a mofo. Ela olhou para eles e estavam encardidos. Ela podia jurar que tinha trocado tudo no dia anterior e jamais deixaria os seus lençóis ficarem sujos daquele jeito. O seu travesseiro parecia desgastado, não estavam macios e confortáveis como antes. Ela então olhou o seu quarto. As paredes estavam mofadas como se tivessem passado por anos de infiltração, a sua estante de livros estava estourada, os livros no chão, todos sujos, rasgados. O seu computador estava todo enferrujado, assim como o seu abajur. O seu celular ainda estava no mesmo lugar, empoeirado, desgastado, sem bateria. Ela tentou carrega-lo, mas percebeu que não tinha energia. O chão estava imundo, como se não tivesse sido varrido há anos. Ao colocar os pés no chão, sentiu ele grudento. Mas o mais estranho, o que ela ainda não havia notado até então era como a luz do sol estava estranha, fraca, diferente do que costumava ser. A sua cabeça girava: O que estava acontecendo?

Um barulho de passos veio do corredor. Ela procurou a primeira coisa que viu na sua frente para se proteger. O abajur enferrujado ao lado da sua cama. Esperou ouvir a porta abrir e viu um homem adentrar o seu quarto. Ela bateu com o abajur em sua cabeça e o viu desmaiar. O que poderia fazer agora? Deveria fugir? Ela olhou pela janela e o mundo parecia tomado por plantas. Não reconhecia aquele lugar. Mas percebeu os movimentos lá fora e os olhos que pareciam te encarar. Ela não podia sair, não sabia o que a esperava lá. Então, pegou algumas peças de roupa e amarrou aquele homem desacordado à sua cama e aguardou. Precisava de respostas.

Ele despertou. Sentia uma dor horrível de cabeça. Olhou para cima e a viu segurando um abajur. Ela imediatamente gritou: ‘Quem é você, o que está acontecendo?’. Ele olhou para ela e imediatamente começou a dizer: ‘Não, não, não, não, não... Deu tudo errado. Não! O que você está fazendo aqui? NÃO! Você precisa voltar!’. Ele pode ver a confusão na cara dela. Claro, nada fazia sentido. Ela era de outro momento. Mas não era para estar ali. Não era para ele estar ali ainda. Ela precisava voltar. ‘Me responda! Quem é você? O que está acontecendo?’. Ele começou a chorar. Então disse: ‘Eu tentei te trazer de volta para antes de você conhece-lo, mas te trouxe para agora. Não era para você estar aqui agora, não assim.’

Ela não conseguia entender nada. Estava confusa. Olhava para aquele rosto e ele tinha algo de familiar, deveria ter em torno de 30 e poucos anos. Ela sentia uma conexão estranha com ele. Mas estava tudo fora de lugar naquele cenário tão familiar. Como se ali não fosse o tempo dela. Ele começou a dizer: ‘Olha, o mundo está morrendo. Houve um grande desastre que destruiu o nosso meio ambiente. A terra está esfriando. Poucos sobreviveram. Não tem mais comida para todos. Olhe lá fora. Você consegue vê-los. Eles são como nós, mas tornaram-se algo selvagem. Estão famintos e como estamos agora é um banquete para eles. Eu sei disso, eu estou lá agora.’. Nada fazia sentido. Como que o mundo está morrendo? Ela esteve dormindo enquanto o mundo se acabava? Ela se lembra que havia saído ontem com os seus amigos. Beberam um pouco, se divertiram. Ela conheceu alguém novo, mas voltou para a casa. Olhando para o homem amarrado em sua casa, tinha algo de familiar, que lembrava o homem que ela conheceu. Agora ela se lembra, tinha alguém na sua porta ontem. Era ele. O que ele disse mesmo? ‘Você precisa saber.’ Ela então disse: ‘O que eu preciso saber?’

Agora ele conseguiu entender um pouco. Ela não se lembrava de nada de ontem. Ele então decidiu responder: ‘Laura, eu sei que tudo isso parece insano. Ontem nós conversamos e você não conseguiu processar bem o que te disse. Talvez a sua mente não tenha conseguido processar as informações. 30 anos atrás você conheceu um homem, Pedro. Vocês estiveram juntos por alguns meses, mas veio a guerra e ele teve de partir. Ele nunca mais voltou e você imaginou que ele estava morto. O que tornou as coisas mais difíceis é que você estava grávida. E esse bebê era eu.’.

Não, impossível. Aquilo não fazia sentido. Ela não viveu nada daquilo. Isso não aconteceu. Ela começou a gritar: ‘Mentira! Isso nunca aconteceu!’ Ele disse, quase que ao mesmo tempo: ‘Isso não aconteceu, ainda. Entenda, eu vim tentar te alertar. Ele não morreu, ele virou prisioneiro de guerra e eles fizeram algo com o Pedro. Você precisa se preparar! Ele virá até você e me levará com ele. Eles farão experimentos em mim. O que eles estão criando vai desencadear essa catástrofe. As crianças que estavam lá comigo, haviam mais de mil, elas serão tornadas em algo selvagem, feitos para se adaptarem a esse novo mundo. Quanto mais tempo você está aqui, mais você sofrerá com a radiação. Pedro fez isso comigo, o meu pai... Porém os cientistas... eles aparecerem e conseguiram reverter o procedimento. Eles me enviaram para te avisar. Não sei o que aconteceu. Devo ter te trazido comigo. Esse mesmo momento é errado para mim. Eu me lembro... Eu me lembro daqui. É aqui que eu morro. Precisamos voltar!’

Aquilo soava tão insano. Ela queria fugir, mas temia o que a esperava lá fora. As palavras dele eram tão estranhas, mas tão familiar. Ela se lembrava. O homem na porta. Ele parecia tão desesperado e ela queria apenas que ele fosse embora. Ela entrou e ele invadiu a sua casa. Ela se lembra de ter pegado a faca da cozinha, porém ele a desarmou e disse que não queria machucá-la. Ele a amarrou no sofá com as mãos para a frente, de forma que ela conseguia se mexer um pouco. E disse tudo aquilo. O que mais? Sim, ele disse para ela não se envolver com Pedro. Pedro... o homem que ela tinha acabado de conhecer. Eles tinham trocado os números, mas nem chegaram a trocar mensagens. Naquele momento ela tinha sentido o celular vibrar. ‘É ele.’ Disse o homem. ‘É aqui que tudo começa. Você precisa saber!’ Ela conseguiu pegar o celular, que estava no bolso da frente, e viu que já passara da meia-noite. Mas de repente veio um clarão e ela acordou naquela cama. Ela olhou para ele, tentando racionalizar a situação, e perguntou: ‘Como faço então para voltar para o meu tempo original?’.

Ele olhou para ela, apavorado. Era claro que ele não sabia. Mas ele sabia que algo iria acontecer naquela sala: um clarão. O que o cientista havia dito mesmo? ‘Na gaveta azul, você encontrará a chave. Salve a mulher. Você sabe o que acontecerá. Mas você pode ao menos salvá-la.’. Ele olhou ao redor do quarto. Ali estava uma cômoda desgastada. Percebeu que as gavetas já não tinham mais nenhuma cor. Ele apontou para o cômodo e perguntou: ‘As gavetas. Quais eram as cores originais?’, ele perguntou. ‘Cada uma tinha uma cor.’, ela respondeu. ‘Ótimo, qual era a azul?’, ele quis saber. ‘Azul?’, ela pensou. Não tinha nenhuma azul. Ela não entendeu. Mas se lembrou que o buffet da sala era de cor turquesa e tinha uma única gaveta. Então ela disse: ‘Na sala!’.

Ao ouvir aquelas palavras, ele ficou pálido. Não na sala. Ele se lembrava. Na sala era quando iria acontecer. Ele poderia evitar? Ele então pediu que ela fosse sorrateiramente até a sala, mas que se preparasse, tinha algo que poderia tirá-la dali, dentro da gaveta azul. Os selvagens iriam invadir ao perceber qualquer movimento naquele cômodo. Ela então o desamarrou e se prepararam para o que iriam ter de enfrentar.

Saíram do quarto. Ela então entendeu porque eles não poderiam alcança-la. O corredor estava obstruído. Ela entendeu que não era a primeira a ficar ali. Tinha algum mecanismo que brilhava. ‘São mecanismos de proteção.’ Ele explicou. ‘Os cientistas haviam preparado esse lugar para este momento. Eles sabiam que poderia dar errado, porque eu já havia contado a eles. A janela do quarto também estava protegida. Eles sabiam, por isso não avançaram. Mas na sala, estamos expostos.’. ‘Ok, mas como passamos?’ Ela nem conseguia acreditar no que estava acontecendo. ‘Tem uma senha. Mas eles nunca me disseram. Só uma dica. “Em um dia de sol, no lago oeste, eu vi alguém que me chamava. Estava sentada em uma pedra. Era uma miragem. Mas sabia bem quem era ela.”’ ‘A sereia!’ Ela respondeu. ‘Era um conto que a minha mãe costumava ler para mim quando eu era criança. Qual era o nome dela? Sim! Iara!’. Então ela olhou a parede e pode ver a saliência. Ela tocou e uma tela se acendeu. Ela pode digitar a senha. O mecanismo de defesa se desligou.

Não tinham muito o que fazer. Tinham que correr até o buffet da sala. Ele ainda estava lá, mas a gaveta havia sumido. E agora? Então ela se lembrou que havia um compartimento secreto onde ela deixava algum dinheiro guardado. Ela tateou e ainda estava lá. Quando abriu, viu um estranho relógio digital. ‘Coloque a data e a hora de quando você me viu pela primeira vez! AGORA!’. Ele gritou. Viu a porta se escancarar. Mal podia acreditar no que vira. Era o mesmo homem que estava ao seu lado, mas vestindo farrapos, seus cabelos e barba estavam grandes e imundos. A sua aparência era horrível, estava extremamente magro. Mas era ele! Eles se olharam, com enorme espanto. Ela digitou a data e a hora e então veio novamente o clarão. Estava de volta, sentada no sofá. Mas ele já não estava mais lá. Ele não conseguiu retornar. Ela precisava salvá-lo! O seu filho! Mas aquilo não fazia sentido. Então o seu celular vibrou. Era o Pedro. Será que ela conseguiria reverter aquele terrível futuro. Ela então respondeu:

‘Olá Pedro. Gostei muito de te conhecer hoje. Olha só, queria muito te ver. Você pode vir aqui?’

‘Agora?’. Ele perguntou.

‘Sim. Por favor. Você precisa saber...’

Priscila de Athaides – 02/06/2020

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