Ela
acordou e percebeu que tinha algo estranho. Ainda estava em seu quarto, mas ele
estava diferente. Os seus lençóis já não exalavam ao cheiro fresco do amaciante
que ela adorava. Agora cheiravam a mofo. Ela olhou para eles e estavam encardidos.
Ela podia jurar que tinha trocado tudo no dia anterior e jamais deixaria os
seus lençóis ficarem sujos daquele jeito. O seu travesseiro parecia desgastado,
não estavam macios e confortáveis como antes. Ela então olhou o seu quarto. As
paredes estavam mofadas como se tivessem passado por anos de infiltração, a sua
estante de livros estava estourada, os livros no chão, todos sujos, rasgados. O
seu computador estava todo enferrujado, assim como o seu abajur. O seu celular
ainda estava no mesmo lugar, empoeirado, desgastado, sem bateria. Ela tentou
carrega-lo, mas percebeu que não tinha energia. O chão estava imundo, como se
não tivesse sido varrido há anos. Ao colocar os pés no chão, sentiu ele
grudento. Mas o mais estranho, o que ela ainda não havia notado até então era
como a luz do sol estava estranha, fraca, diferente do que costumava ser. A sua
cabeça girava: O que estava acontecendo?
Um
barulho de passos veio do corredor. Ela procurou a primeira coisa que viu na
sua frente para se proteger. O abajur enferrujado ao lado da sua cama. Esperou
ouvir a porta abrir e viu um homem adentrar o seu quarto. Ela bateu com o
abajur em sua cabeça e o viu desmaiar. O que poderia fazer agora? Deveria
fugir? Ela olhou pela janela e o mundo parecia tomado por plantas. Não
reconhecia aquele lugar. Mas percebeu os movimentos lá fora e os olhos que
pareciam te encarar. Ela não podia sair, não sabia o que a esperava lá. Então,
pegou algumas peças de roupa e amarrou aquele homem desacordado à sua cama e
aguardou. Precisava de respostas.
Ele
despertou. Sentia uma dor horrível de cabeça. Olhou para cima e a viu segurando
um abajur. Ela imediatamente gritou: ‘Quem é você, o que está acontecendo?’.
Ele olhou para ela e imediatamente começou a dizer: ‘Não, não, não, não, não...
Deu tudo errado. Não! O que você está fazendo aqui? NÃO! Você precisa voltar!’.
Ele pode ver a confusão na cara dela. Claro, nada fazia sentido. Ela era de
outro momento. Mas não era para estar ali. Não era para ele estar ali ainda.
Ela precisava voltar. ‘Me responda! Quem é você? O que está acontecendo?’. Ele
começou a chorar. Então disse: ‘Eu tentei te trazer de volta para antes de você
conhece-lo, mas te trouxe para agora. Não era para você estar aqui agora, não
assim.’
Ela não
conseguia entender nada. Estava confusa. Olhava para aquele rosto e ele tinha
algo de familiar, deveria ter em torno de 30 e poucos anos. Ela sentia uma
conexão estranha com ele. Mas estava tudo fora de lugar naquele cenário tão
familiar. Como se ali não fosse o tempo dela. Ele começou a dizer: ‘Olha, o
mundo está morrendo. Houve um grande desastre que destruiu o nosso meio
ambiente. A terra está esfriando. Poucos sobreviveram. Não tem mais comida para
todos. Olhe lá fora. Você consegue vê-los. Eles são como nós, mas tornaram-se
algo selvagem. Estão famintos e como estamos agora é um banquete para eles. Eu
sei disso, eu estou lá agora.’. Nada fazia sentido. Como que o mundo está
morrendo? Ela esteve dormindo enquanto o mundo se acabava? Ela se lembra que
havia saído ontem com os seus amigos. Beberam um pouco, se divertiram. Ela
conheceu alguém novo, mas voltou para a casa. Olhando para o homem amarrado em
sua casa, tinha algo de familiar, que lembrava o homem que ela conheceu. Agora
ela se lembra, tinha alguém na sua porta ontem. Era ele. O que ele disse mesmo?
‘Você precisa saber.’ Ela então disse: ‘O que eu preciso saber?’
Agora ele
conseguiu entender um pouco. Ela não se lembrava de nada de ontem. Ele então
decidiu responder: ‘Laura, eu sei que tudo isso parece insano. Ontem nós
conversamos e você não conseguiu processar bem o que te disse. Talvez a sua
mente não tenha conseguido processar as informações. 30 anos atrás você
conheceu um homem, Pedro. Vocês estiveram juntos por alguns meses, mas veio a
guerra e ele teve de partir. Ele nunca mais voltou e você imaginou que ele
estava morto. O que tornou as coisas mais difíceis é que você estava grávida. E
esse bebê era eu.’.
Não,
impossível. Aquilo não fazia sentido. Ela não viveu nada daquilo. Isso não
aconteceu. Ela começou a gritar: ‘Mentira! Isso nunca aconteceu!’ Ele disse,
quase que ao mesmo tempo: ‘Isso não aconteceu, ainda. Entenda, eu vim tentar te
alertar. Ele não morreu, ele virou prisioneiro de guerra e eles fizeram algo
com o Pedro. Você precisa se preparar! Ele virá até você e me levará com ele.
Eles farão experimentos em mim. O que eles estão criando vai desencadear essa
catástrofe. As crianças que estavam lá comigo, haviam mais de mil, elas serão
tornadas em algo selvagem, feitos para se adaptarem a esse novo mundo. Quanto
mais tempo você está aqui, mais você sofrerá com a radiação. Pedro fez isso
comigo, o meu pai... Porém os cientistas... eles aparecerem e conseguiram
reverter o procedimento. Eles me enviaram para te avisar. Não sei o que
aconteceu. Devo ter te trazido comigo. Esse mesmo momento é errado para mim. Eu
me lembro... Eu me lembro daqui. É aqui que eu morro. Precisamos voltar!’
Aquilo
soava tão insano. Ela queria fugir, mas temia o que a esperava lá fora. As
palavras dele eram tão estranhas, mas tão familiar. Ela se lembrava. O homem na
porta. Ele parecia tão desesperado e ela queria apenas que ele fosse embora.
Ela entrou e ele invadiu a sua casa. Ela se lembra de ter pegado a faca da
cozinha, porém ele a desarmou e disse que não queria machucá-la. Ele a amarrou
no sofá com as mãos para a frente, de forma que ela conseguia se mexer um
pouco. E disse tudo aquilo. O que mais? Sim, ele disse para ela não se envolver
com Pedro. Pedro... o homem que ela tinha acabado de conhecer. Eles tinham
trocado os números, mas nem chegaram a trocar mensagens. Naquele momento ela
tinha sentido o celular vibrar. ‘É ele.’ Disse o homem. ‘É aqui que tudo
começa. Você precisa saber!’ Ela conseguiu pegar o celular, que estava no bolso
da frente, e viu que já passara da meia-noite. Mas de repente veio um clarão e
ela acordou naquela cama. Ela olhou para ele, tentando racionalizar a situação,
e perguntou: ‘Como faço então para voltar para o meu tempo original?’.
Ele olhou
para ela, apavorado. Era claro que ele não sabia. Mas ele sabia que algo iria
acontecer naquela sala: um clarão. O que o cientista havia dito mesmo? ‘Na
gaveta azul, você encontrará a chave. Salve a mulher. Você sabe o que
acontecerá. Mas você pode ao menos salvá-la.’. Ele olhou ao redor do quarto.
Ali estava uma cômoda desgastada. Percebeu que as gavetas já não tinham mais
nenhuma cor. Ele apontou para o cômodo e perguntou: ‘As gavetas. Quais eram as
cores originais?’, ele perguntou. ‘Cada uma tinha uma cor.’, ela respondeu.
‘Ótimo, qual era a azul?’, ele quis saber. ‘Azul?’, ela pensou. Não tinha
nenhuma azul. Ela não entendeu. Mas se lembrou que o buffet da sala era de cor
turquesa e tinha uma única gaveta. Então ela disse: ‘Na sala!’.
Ao ouvir
aquelas palavras, ele ficou pálido. Não na sala. Ele se lembrava. Na sala era
quando iria acontecer. Ele poderia evitar? Ele então pediu que ela fosse
sorrateiramente até a sala, mas que se preparasse, tinha algo que poderia
tirá-la dali, dentro da gaveta azul. Os selvagens iriam invadir ao perceber
qualquer movimento naquele cômodo. Ela então o desamarrou e se prepararam para
o que iriam ter de enfrentar.
Saíram do
quarto. Ela então entendeu porque eles não poderiam alcança-la. O corredor
estava obstruído. Ela entendeu que não era a primeira a ficar ali. Tinha algum
mecanismo que brilhava. ‘São mecanismos de proteção.’ Ele explicou. ‘Os
cientistas haviam preparado esse lugar para este momento. Eles sabiam que
poderia dar errado, porque eu já havia contado a eles. A janela do quarto
também estava protegida. Eles sabiam, por isso não avançaram. Mas na sala,
estamos expostos.’. ‘Ok, mas como passamos?’ Ela nem conseguia acreditar no que
estava acontecendo. ‘Tem uma senha. Mas eles nunca me disseram. Só uma dica.
“Em um dia de sol, no lago oeste, eu vi alguém que me chamava. Estava sentada
em uma pedra. Era uma miragem. Mas sabia bem quem era ela.”’ ‘A sereia!’ Ela
respondeu. ‘Era um conto que a minha mãe costumava ler para mim quando eu era
criança. Qual era o nome dela? Sim! Iara!’. Então ela olhou a parede e pode ver
a saliência. Ela tocou e uma tela se acendeu. Ela pode digitar a senha. O
mecanismo de defesa se desligou.
Não
tinham muito o que fazer. Tinham que correr até o buffet da sala. Ele ainda
estava lá, mas a gaveta havia sumido. E agora? Então ela se lembrou que havia
um compartimento secreto onde ela deixava algum dinheiro guardado. Ela tateou e
ainda estava lá. Quando abriu, viu um estranho relógio digital. ‘Coloque a data
e a hora de quando você me viu pela primeira vez! AGORA!’. Ele gritou. Viu a
porta se escancarar. Mal podia acreditar no que vira. Era o mesmo homem que
estava ao seu lado, mas vestindo farrapos, seus cabelos e barba estavam grandes
e imundos. A sua aparência era horrível, estava extremamente magro. Mas era
ele! Eles se olharam, com enorme espanto. Ela digitou a data e a hora e então
veio novamente o clarão. Estava de volta, sentada no sofá. Mas ele já não
estava mais lá. Ele não conseguiu retornar. Ela precisava salvá-lo! O seu
filho! Mas aquilo não fazia sentido. Então o seu celular vibrou. Era o Pedro.
Será que ela conseguiria reverter aquele terrível futuro. Ela então respondeu:
‘Olá
Pedro. Gostei muito de te conhecer hoje. Olha só, queria muito te ver. Você
pode vir aqui?’
‘Agora?’.
Ele perguntou.
‘Sim. Por
favor. Você precisa saber...’
Priscila
de Athaides – 02/06/2020
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