sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Amendoeira

Anos de solidão, vivendo a base de mentiras sobre o mundo. Sexo é sujo, a televisão é suja, o corpo é sujo, os olhos são sujos. Limpe a sua mente, limpe o seu corpo, não sinta prazer, não sinta, não sinta, não seja. E então Dona Clara tem uma súbita parada cardíaca e deixa o seu filho Fernando, já com os seus 34 anos, sozinho em sua pequena casa sem os tão acostumados ‘nãos’.


E quem era Fernando? Um homem que vivia apenas para a sua mãe? Um homem que vivia apenas em seu quarto? Um homem que tinha a janela bloqueada pro mundo? Um homem? Um garoto? Um monstro? Um prisioneiro? Fernando nem ao menos sabia quem estava dentro daquele corpo que ele chamava de seu, imagina o que esperar do mundo que sempre foi negado a ele.


E então, após semanas de isolamento sem ao menos saber o que fazer com o corpo putrificado da sua mãe deixado na mesma posição em que se encontrava na sua cama, Fernando olhou para a porta que dava para a rua e saiu.


A primeira coisa que sentiu foi o sol queimando a sua retina. O cheiro imundo da rua invadindo as suas narinas. Tantos cheiros, tantos sons que invadiam todas as células do seu corpo. Ele nascia. E então abriu os seus olhos e encarou a amendoeira que ficava na frente da porta da sua casa e que derrubava um de seus frutos aos pés daquele homem estranho, pálido, corcunda e magricelo, manchando na calçada a cor vermelho escuro que o lembrava da pele de sua mãe apodrecida. Talvez o mundo fosse mesmo podre, como a sua mãe, tão devota a Deus, o fazia acreditar. Deus era puro e criou o mundo. Ele sempre imaginava que Deus cagou o mundo criando aqui todo o excremento das suas entranhas, porque não entendia como um ser tão puro criaria um mundo tão sujo como este.


E então ele observou as pessoas. Todos com vários formatos, vários tamanhos, várias cores. A sua mãe sempre falava em como os homens eram todos iguais, ‘todos, uma hora ou outra, mostravam a sua verdadeira face maligna. Todos são maus, todos carregam a semente do pecado!’ Ela gritava enervante enquanto o espancava depois de força-lo a ficar dentro dela. Mas ele não entendia como todos poderiam ser iguais se ele não reconhecia ninguém, todos tinham o rosto diferente do dele, assim como a imagem daquele homem pendurado numa cruz que a mãe tinha espalhado por toda a casa e que ela afirmava fervorosamente ser o melhor homem que já existiu.


E então Fernando percebeu que ele não sabia de nada e isso o revoltava. O mundo apenas fazia a sua vista doer, as suas pernas pareciam se cansar enquanto caminhava pela calçada tentando ir para longe e via os carros passarem rapidamente, o fazendo recuar. O mundo era uma prisão e aqueles anos encarcerado foram a sua salvação. Era o que ele conhecia e isso o confortava. Talvez a sua mãe sempre esteve certa em mantê-lo longe dali. Mas agora ela já não estava mais ali, o abandonara. E não havia nada mais detestável e assustador do que perceber que aquela estrada de concreto era tudo o que ele tinha naquele momento.

Priscila de Athaídes

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